O antigo povo das águas


Livro a ser lançado nesta segunda-feira em Brasília revela a existência de uma civilização que, há mais de mil anos, vivia sobre as águas na Baixada Maranhense

Machado de pedra e o Muiraquitã de jade encontrados nas estearias

          
 Há pelo menos 1.200 anos, a Baixada Maranhense, uma região de 20 mil quilômetros de terras baixas e inundáveis situadas a oeste de São Luís, abrigou uma civilização que vivia em aldeias formadas por conjuntos de palafitas erguidas no leito de rios e no meio dos lagos. Esse povo, que escolheu viver sobre as águas provavelmente por questões de defesa e subsistência, fabricava utensílios de cerâmica e pedra e se comunicava com populações da Amazônia, do Caribe e da América Central.
            Os vestígios mais evidentes desses assentamentos humanos são as estearias, aglomerações de milhares de esteios de madeira maciça que permanecem por séculos fincados no leito das águas de rios e lagos em municípios como Viana, Cajari, Penalva, Santa Helena, Pinheiro e Nova Olinda.
Os troncos de madeira serviam de pilares de sustentação das moradias suspensas. Entre os esteios, sob a água, enterrados ou na superfície do solo, encontra-se um vasto e rico material arqueológico: utensílios em cerâmica decorada e artefatos de pedras, como estatuetas e ferramentas utilizadas por aquele povo.
Cerca de 10 mil vasilhames e fragmentos cerâmicos e líticos das principais estearias foram recolhidos e estão sendo catalogados e estudados nos últimos cinco anos  por professores e estudantes do Laboratório de Arqueologia (Larq) da Universidade Federal do Maranhão. Especialistas da UFMA e de outras universidades do Brasil e do exterior analisam o material sob enfoques diversos das ciências humanas e sociais. Datações radiocarbônicas revelam que esse povo viveu naqueles locais entre os anos 3.000 a.C. e 800 d.C.

A civilização lacustre

O livro a ser lançado nesta segunda-feira
 Os resultados iniciais dos estudos realizados pelo Larq podem ser conferidos no livro Civilização lacustre do Maranhão (Edufma), de autoria do coordenador do laboratório, Alexandre Guida Navarro,  que será lançado nesta segunda-feira, 16, em Brasília, durante a cerimônia de entrega do Prêmio Luís de Castro Farias, patrocinado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). (SEPS, quadra 713/913, Bloco D, Edifício Iphan).
O livro apresenta os sítios arqueológicos estudados, com suas localizações, e traz o mapeamento dos esteios, obtido com a ajuda de equipamentos de georeferenciamento e fotos aéreas, e é ricamente ilustrado com fotografias dos artefatos mais importantes sob o ponto de vista tecnológico e simbólico: vasilhames de cerâmica com pinturas e artefatos líticos.  É a primeira vez que esse material é mostrado ao público.
A obra é apresentada pela antropóloga Anna Roosevelt, da Universidade de Illinois, nos Estados Unidos,  pioneira em estudos arqueológicos na Amazônia. Bisneta do presidente norte-americano Theodore Roosevelt (1858-1919), que morreu em consequência de uma malária contraída durante viagem à Amazônia em 1916, Anna visitou as estearias maranhenses  em janeiro de  2018. Ela afirma, no prefácio do livro de Navarro, que “o padrão de assentamento do povo das palafitas no Maranhão é não apenas único entre as culturas arqueológicas conhecidas”, mas “sua maneira de subsistência em recursos naturais era também especial.”
Anna Roosevelt observa paralelos entre os povos das palafitas e os extintos Warao da Venezuela, que adotavam o mesmo tipo de moradia. Ela acredita que os estudos realizados pelo Larq podem ajudar a elucidar a antiga sequência cultural de um habitat aquático ainda pouco estudado e orientar a futura gestão de recursos naturais e desenvolvimento econômico no Brasil. “A identificação das espécies de árvores das terras baixas da antiguidade pode dar uma perspectiva valiosa para o reflorestamento e restauração dos níveis de precipitação regional”, propõe.
A ex-presidente do Iphan, Kátia Santos Bogéa, destaca a importância da publicação, patrocinada pelo órgão do patrimônio e pela Fundação Sousândrade, da UFMA. Ela diz ter esperança de que escavações arqueológicas sistemáticas ainda poderão trazer muitas novidades de como vivia o homem pré-histórico do Maranhão.

Primeiras pesquisas

A estearia do Sítio Encantado, em Pinheiro: pilares de madeira pré-históricos
Quem pela primeira vez identificou e estudou esse achado arqueológico, único em território americano, foi o geógrafo e etnólogo maranhense Raimundo Lopes (1894-1941). Em 1919, exatamente há cem anos, Lopes realizou estudos de campo nas estearias dos lagos Cajari, em Penalva, e Cafundoca, em Pinheiro. Fotografou os esteios e recolheu peças e fragmentos de cerâmica e pedra. Em exposição no Jornal do Commercio, no Rio de Janeiro, em maio de 1924, ele mostrou o acervo à comunidade científica.
Em seguida, estabeleceu comparações dos achados das estearias com  as cerâmicas encontradas no Amapá e no baixo Amazonas e com a arte marajoara. Ele construiu a hipótese com base na descoberta, no lago Cajari, de três muiraquitãs – artefatos talhados em  pedra de jade, de cor esverdeada, com formas zoomórficas e antropomórficas, aos quais são atribuídos poderes sobrenaturais. Objetos de uso ritual ou como adorno para demonstração de poder, haviam sido encontrados antes no baixo Amazonas.
Lopes depositou esse material arqueológico no Museu Nacional, cujo acervo foi quase todo destruído pelo incêndio que devastou o prédio da instituição em 2018.
            As pesquisas só foram retomadas nos anos 70 do século passado, quando Mário Ferreira Simões ampliou os estudos de Raimundo Lopes, medindo as áreas dos esteios no lago Cajari, em Viana. Simões obteve a primeira datação carbônica de resíduos de madeira de uma estearia, apontando para o ano 570 d. C. Outro estudioso que se debruça sobre o tema é o maranhense Deusdedith Carneiro Filho, professor de História na Unviersidade Federal do Maranhão
            Nos anos 90, a Universidade Federal do Maranhão passou a dar atenção aos sítios arqueológicos da Baixada Maranhense. Em 2014, implantou o Laboratório de Arqueologia, cuja coordenação foi entregue a um especialista, o professor Alexandre Guida Navarro, graduado em História com doutorado em Antropologia na Universidade do México e aperfeiçoamento na Universidade de Illinois, nos Estados Unidos.
O levantamento, que incluiu escavações, e as pesquisas posteriores contaram com apoio do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), Fundação de Amparo à Pesquisa no Maranhão (Fapema) e Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
Alexandre Navarro, o reitor da UFMA, Natalino Salgado,
e a ex-presidente do Iphan, Kátia Bogéa
            Todo o material recolhido desde então está guardado numa sala do Larq, aberta a estudantes e pesquisadores. O achado mais precioso, para os pesquisadores do laboratório, é um muiraquitã de jade, recuperado em 2014 no sítio Boca do Rio, igual ao recolhido um século antes por Raimundo Lopes. Encontrado entre fragmentos de cerâmica e objetos de pedra, o amuleto verde em forma de rã é esculpido em nefrita, espécie de jade encontrado na Costa Rica.
            “As estearias são uma evidência única no contexto da arqueologia de todas as Américas. Como o ambiente aquático preservou os vestígios, os arqueólogos podem recuperar informações preciosas sobre a vida de uma população que vivia no Maranhão 500 anos antes da chegada dos colonizadores”, afirma, esperançoso e confiante, Alexandre Navarro.


           


            



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