Os olhos tristes de Verônica
Vagava pela cidade com umas roupas velhas e compridas, a cabeça coberta por um molambo em forma de véu ou mantilha, sem esconder o rosto negro, magro e uns olhos escuros e profundos que sempre me pareceram os olhos da pessoa mais triste do mundo.
Ninguém sabia onde morava. Acredito que não tinha casa nem ninguém em sua vida, pois era comum encontrá-la adormecida entre as raízes de uma sumaúma centenária na beira do rio Corda, às 5 horas da manhã, quando eu e meus colegas do colégio nos atirávamos contrariados em suas águas gélidas para dar por concluída a aula de educação física com que o cabo Juarez nos torturava às terças e às quintas-feiras na praça da Bandeira.
Todos os dias, às 7 horas, ela assistia à celebração da primeira missa, ajoelhada no pátio calçado de pedras que existe em frente ao portão principal da igreja matriz, de onde podia divisar o retábulo com frisos de ouro e ouvir a voz e observar os gestos de frei Marcelino de Milão, com seu português mesclado de italiano e latim, falando em misericórdia e salvação.
Era Verônica, a louca mais triste que conheci na vida, lembrada agora há pouco por um amigo dos tempos em que andávamos de calças curtas e sem camisas naquela cidadezinha onde as casas eram cobertas por telhas escuras e lodosas, como para lembrar que tudo ali provinha de um tempo muito antigo.
Casas muito diferentes do casebre de palha em que, dez anos antes, ela vivia no sertão do Jenipapo com o marido Calixto e os três filhos – José, de 9 anos, Cirilo, de 7, e Mundico, de 2, criados nus e livres naqueles matos sem fronteiras, à beira de um riacho de águas transparentes e leito de areia amarela como ouro. No quintal, dois pés de laranja, um de limão, outro de tangerina, duas bananeiras, uma jabuticabeira e uma mangueira frondosa davam àquele ambiente de pobreza um ar de fertilidade e fartura.
Calixto passava o dia na roça, enquanto Verônica cuidava da casa e dos filhos, principalmente de Mundico, criado sob vigilância dentro de casa por causa de dois porcos-do-mato, mantidos no quintal, que só aplacavam a ferocidade quando ela os alimentava com restos de comida.
Os dois filhos mais velhos conheciam toda a redondeza e chegavam a ir à roça do pai sozinhos, a dois quilômetros da casa. Naquele dia, saíram bem cedo para as matas para colher filhotes de passarinhos nas dezenas de ninhos que eles faziam nas árvores, enquanto Verônica permaneceu em casa com o pequeno Mundico, tendo o cuidado de manter a cancela do quintal sempre fechada por causa dos queixadas.
Ela já estava preocupada com a demora dos filhos, quando Cirilo chegou correndo, aflito, em desespero, dizendo aos gritos que José, o mais velho, estava morrendo embaixo da árvore em que fora picado por uma jararaca. A mãe, em desespero, deixou-o ali mesmo, no pátio, e saiu correndo para tentar salvar o primogênito.
Pela manhã, horas depois de terem saído de casa, José e Cirilo tinham visto no tronco de uma mangueira um buraco que lhes parecera um ninho. José escalou a árvore, meteu a mão no buraco, sentiu uma picada no indicador e desceu imediatamente, contando ao irmão que o filhote o bicara. Ficou no chão contorcendo-se de dor, e o irmão resolveu subir também para buscar o passarinho. Foi picado igualmente, percebeu que se tratava de uma jararaca, e desceu aos gritos. No chão, encontrou o irmão em agonia, espumando pela boca. Foi então que disparou de volta a casa, para dar noticia à mãe, e lá permaneceu, enquanto ela se precipitava numa corrida de desespero.
Quando chegou ao local indicado por Cirilo, Verônica encontrou o filho sem vida. Aos prantos, com o filho nos braços, fez o caminho de volta, através da vereda interminável. Dor maior ainda a aguardava, pois viu à distância, estendido no chão do pátio em frente à casa, José, o filho mais velho, morto pelo efeito prolongado do veneno da cobra.
Mas foi ao entrar de volta na casa que Verônica percebeu que o seu mundo desabara, que tudo perdera o sentido, que a partir daquele dia era impossível viver. Os dois porcos-do-mato tinham arrebentado a cancela do quintal e estavam dentro da sala, os focinhos ensanguentados, num festim macabro. O caçula Mundico tinha servido de repasto aos suínos selvagens.
Ao chegar da roça no fim do dia, Calixto desmaiou diante da cena com que se defrontou. Ao recobrar os sentidos, chorou, abraçado com Verônica durante tanto tempo que os antigos dizem que as suas lágrimas aumentaram o volume das águas do riacho e semearam de tristeza todos os vales do sertão do Jenipapo. Verônica ainda o observou, momentos depois, caminhando em direção à estrada. Foi a última vez que o viu.
Muitos anos depois dessa tragédia, quando a conheci na porta da igreja, Verônica não chorava.
Mas os seus olhos transmitiam uma tristeza que jamais vi estampada em outro rosto, em nenhum rincão da Terra.
(Esta crônica é dedicada a Paulo Roberto Milhomem Nava, amigo de infância, que me lembrou de Verônica).
Excelente!
ResponderExcluirMuito impressionante a história em um ótimo Texto!
ResponderExcluiruma história muito bem narrada, mas com um contexto muito triste!
ResponderExcluirQue conto maravilhodo! Andei pela rua ao amanhecer, fui ao rio frio me banhá após a educação física. A memória espiou junto com Verônica a homilia .
ResponderExcluirParabéns ao escritor.
Jamais pensei que os contos de amor, loucura e morte de Horacio Quiroga teriam equivalente real em Barra do Corda. Que historia soturna... sinto-me como alguem que acaba de ler um desses contos, ou mesmo como alguém que, curioso, mete a mão no lodo das telhas e descobre em sua gélida textura o habitate de vidas singulares. História impactante e penetrante como muitas que devem existir no limbo do esquecimento. Parabéns pelo resgate.
ResponderExcluirUma história triste, mas muito bem narrada. Excelente!
ResponderExcluirParabéns pelo resgate de histórias de figuras imblematicas de nossa Barra do Corda.
ResponderExcluirAgradeço a todos pelos comentários, mas preferiria q todos se identificaçoes, até porque a gratidão será maior.obrigado, amigos!
ResponderExcluirFiquei profundamente tocada ,como mulher e mãe que sou.Triste demais a história de Verônica ,mas vc conseguiu escrevê-la de uma forma bela!
ResponderExcluirUma luz que me leva as ruas da barra dos anos 70. Os olhos da Veronica , são espelhos d'água
ResponderExcluirMostrando os retalhos da alma no palco vestida nos trapos da Vida .... Louca , louca vida !!
Agradeço pela dedicação da crônica à minha pessoa. O texto ficou muito bem escrito. Parabéns meu amigo Antonio Carlos Lima.
ResponderExcluirPaulo Roberto Milhomem Nava
Triste fatalidade viveu Verônica! A pobre mãe viveu por viver, seus dias tristes! Ficou excelente o texto dessa forte e comovente história!
ResponderExcluirJuraíza Rocha Bílio.
Caro leitor
ResponderExcluirPreferiria que todos se identificassem, até mesmo p agradecer sua participação.
Para tanto, basta ao escolher:
,
selecionar logo na linha de cima:
Em seguida escolher a opção:
e digitar seu nome.
Obrigado, amigos!
Antonio Carlos, eu fiquei sem palavras. Uma crônica pungente, que me emocionou muito. O começo e o final se conectam de uma forma magistral. E, justamente, o final, curto, seco, sem ceder à delongas, cria um eco surpreendente, amplia a Verônica, pelos chãos batidos de terra da memória. Um abraço, Zé Luiz
ResponderExcluirObrigado, amigo José Luís Nogueira. Abraços
ExcluirExcelente, como sempre! Admiravel capacidade de romancizar os fatos!
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