Quanto vale um poeta?
Era verdade. Fui abri-lo à noite, já na cama, certo de que folhearia algumas páginas para em seguida cair no sono. Qual o quê! Foi começar a leitura e só parar após a última página daquela novela distópica, meio ficção, meio poesia. Aliás, ainda fiquei lendo um apêndice sensacional do autor, a ficha bibliográfica e até o texto da contracapa. Como se diz no jargão dos bibliófilos, em vez de pegar (e largar) o livro, foi o livro que me pegou e não me largou. Com ele dormi e com ele sonhei.
Vou logo prevenindo: é o que pode acontecer com qualquer leitor, desses que se deixam fascinar por narrativas originais, curtas e inteligentes (o livro, em formato de bolso, conta com apenas 92 páginas), e têm filhas que, além de lindas e carinhosas, como Duda, lhe dão sugestões de leitura.
O livro conta a história de uma família, um casal e dois filhos, que vive numa sociedade tão excessivamente capitalista e materialista que atribui valor ($) a tudo, até às manifestações de afeto. O beijo se define pelos mililitros de saliva gasta no contato com o outro. As pessoas não têm nomes, mas números. Alíás, tudo tem número. A fórmula corrente de cumprimento é: crescimento e prosperidade. Quando a narradora – a filha do casal - pergunta ao irmão se ele está apaixonado e ele confirma, ela indaga: “Quanto por cento?” E ele, categórico: “Setenta por cento”. Nessa sociedade, tudo tem que ser utilitário e lucrativo. As pessoas não têm animais de estimação, mas artistas e poetas. Por isso, um dia a menina pede aos pais que adquiram para ela não um gatinho, mas um poeta. O pai questionou: “Porque não um artista?”. A mãe responde: “Nem pensar, fazem muita porcaria”.
E assim a história avança, com absurdos, humor, leveza e poesia. A menina ganha o seu poeta e a família o instala num canto debaixo da escada, com uma cama e uma mesinha.
A família, que é muita rica, dona de fábricas, começa a enfrentar problemas financeiros, tendo que lidar, em casa, com as platitudes do poeta, que diz e escreve frases aparentemente absurdas, que depois vão fazer todo o sentido e mudar a vida das pessoas.
Na bancarrota, o pai (por economia, ele é obrigado a demitir o poeta!) começa a recompor sua fortuna quando passa a valorizar as condições de trabalho de seus colaboradores. Por causa do poeta, descobre que o bem-estar de um empregado, a sua felicidade no trabalho, tem influencia direta na produtividade e na competitividade, havendo até quem sugira ousadamente – ele diz – que a redução da jornada de trabalho poderá ser responsável por um incremento na produção e disso resultar maior lucro para a fábrica.
Afonso Cruz, o português autor desse pequeno livro (recuso-me a chamar qualquer livro, por menor que seja, de livrinho!) leva o leitor a refletir sobre o utilitarismo e o valor da arte, num mundo em que tudo é quantificado e monetizado. E essas reflexões são entremeadas com versos de poemas (que só o leitor qualificado identificará) de Walt Whitman, Yeats, Bukowski, Herberto Salles, Dylan Thomas, e por aí vai.
Fui dormir gratificado pela leitura desse livro, que muita gente já deve ter lido, e com a sugestão de Duda e sua frase certeira: “Sei que você vai gostar”. E gostei. Gostei especialmente da última frase do livro, quando o autor recomenda que antes de nos deitarmos deveríamos repetir a oração: “Tenho milhas a percorrer antes de dormir”.(Whitman?). Foi o que fiz ontem à noite.
E só não saio hoje às ruas para comprar um poeta para minha filha, primeiro porque não há poetas à venda, segundo, porque dezenas, centenas deles, nos espreitam das estantes, em todos os cantos de nossa casa.
Vou procurar o dito livro por aqui. Lerei antes dormir. A sua crónica está como sempre: perfeita!
ResponderExcluirBelíssima crônica, tio.
ResponderExcluirSaudades suas.