Quanto vale um poeta?

"Pai, sugiro que leia este livro. Sei que vai gostar". Tratava-se de um pequeno volume de capa azul com uns desenhos repetidos e um título curioso: Vamos comprar um poeta. O autor, o português Afonso Cruz, de quem jamais ouvira falar. 

Recebi o livro, coloquei-o na mesinha ao lado da poltrona e continuei a ler o Livro de areia, de Borges, por quem ando fascinado ultimamente. E prometi a Duda acatar sua sugestão. No dia seguinte, de saída para a universidade, ela foi novamente ao cantinho da sala em que me recolho para ler, viu o Borges cobrindo meu rosto, e cobrou: “Poxa, pai, você ainda nem abriu o livro que lhe dei!”. 

 

Era verdade. Fui abri-lo à noite, já na cama, certo de que folhearia algumas páginas para em seguida cair no sono. Qual o quê! Foi começar a leitura e só parar após a última página daquela novela distópica, meio ficção, meio poesia. Aliás, ainda fiquei lendo um apêndice sensacional do autor, a ficha bibliográfica e até o texto da contracapa. Como se diz no jargão dos bibliófilos, em vez de pegar (e largar) o livro, foi o livro que me pegou e não me largou. Com ele dormi e com ele sonhei. 

 

Vou logo prevenindo: é o que pode acontecer com qualquer leitor, desses que se deixam fascinar por narrativas originais, curtas e inteligentes (o livro, em formato de bolso, conta com apenas 92 páginas), e têm filhas que, além de lindas e carinhosas, como Duda, lhe dão sugestões de leitura.  

 

O livro conta a história de uma família, um casal e dois filhos, que vive numa sociedade tão excessivamente capitalista e materialista que atribui valor ($) a tudo, até às manifestações de afeto. O beijo se define pelos mililitros de saliva gasta no contato com o outro. As pessoas não têm nomes, mas números. Alíás, tudo tem número. A fórmula corrente de cumprimento é: crescimento e prosperidade. Quando a narradora – a filha do casal - pergunta ao irmão se ele está apaixonado e ele confirma, ela indaga: “Quanto por cento?” E ele, categórico: “Setenta por cento”. Nessa sociedade, tudo tem que ser utilitário e lucrativo. As pessoas não têm animais de estimação, mas artistas e poetas. Por isso, um dia a menina pede aos pais que adquiram para ela não um gatinho, mas um poeta. O pai questionou: “Porque não um artista?”. A mãe responde: “Nem pensar, fazem muita porcaria”. 

 

E assim a história avança, com absurdos, humor, leveza e poesia. A menina ganha o seu poeta e a família o instala num canto debaixo da escada, com uma cama e uma mesinha. 

 

A família, que é muita rica, dona de fábricas, começa a enfrentar problemas financeiros, tendo que lidar, em casa, com as platitudes do poeta, que diz e escreve frases aparentemente absurdas, que depois vão fazer todo o sentido e mudar a vida das pessoas. 


Na bancarrota, o pai (por economia, ele é obrigado a demitir o poeta!) começa a recompor sua fortuna quando passa a valorizar as condições de trabalho de seus colaboradores. Por causa do poeta, descobre que o bem-estar de um empregado, a sua felicidade no trabalho, tem influencia direta na produtividade e na competitividade, havendo até quem sugira ousadamente – ele diz – que a redução da jornada de trabalho poderá ser responsável por um incremento na produção e disso resultar maior lucro para a fábrica.

 

Afonso Cruz, o português autor desse pequeno livro (recuso-me a chamar qualquer livro, por menor que seja, de livrinho!) leva o leitor a refletir sobre o utilitarismo e o valor da arte, num mundo em que tudo é quantificado e monetizado. E essas reflexões são entremeadas com versos de poemas (que só o leitor qualificado identificará) de Walt Whitman, Yeats, Bukowski, Herberto Salles, Dylan Thomas, e por aí vai. 

 

Fui dormir gratificado pela leitura desse livro, que muita gente já deve ter lido, e com a sugestão de Duda e sua frase certeira: “Sei que você vai gostar”. E gostei. Gostei especialmente da última frase do livro, quando o autor recomenda que antes de nos deitarmos deveríamos repetir a oração: “Tenho milhas a percorrer antes de dormir”.(Whitman?). Foi o que fiz ontem à noite.

 

E só não saio hoje às ruas para comprar um poeta para minha filha, primeiro porque não há poetas à venda, segundo, porque dezenas, centenas deles, nos espreitam das estantes, em todos os cantos de nossa casa.

Comentários

  1. Vou procurar o dito livro por aqui. Lerei antes dormir. A sua crónica está como sempre: perfeita!

    ResponderExcluir
  2. Belíssima crônica, tio.
    Saudades suas.

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

Guimarães Rosa nas alturas

A vantagem do silêncio sobre a adesão do MA à Independência

Gonçalves Dias e a Independência do Brasil

Os amigos maranhenses de Guimarães Rosa

A poesia visceral de Jorge Abreu

Um governador no sertão

O Maranhão em Guimarâes Rosa