Andrelina e a lua

      O 31 de dezembro era um dia muito especial para Andrelina. Não porque fosse reveión, que festa com esse nome esquisito não se conhecia no Curador, mas porque assim tinha sido nos últimos vinte anos.

Por isso, no dia 31 de dezembro ela acordava cedo, junto com as galinhas, como dizia, e logo começava a se desincumbir de suas tarefas, para que nada atrapalhasse o ritual de felicidade que iria cumprir nesta noite.

Em poucos minutos a lenha crepitava no fogão e ela punha o café dissolvido na água para ferver numa panela. Corria ao quintal para colher, com um balde preso a uma corda enrolada numa roldana de madeira,  a água do poço escondido entre mangueiras, laranjeiras e um pé de tuturubá, uma fruta cujo cheiro de sexo rescendia entre as árvores e instigava a alma inquieta de Andrelina.

Ela voltava para o interior  da casa com o balde cheio, abastecia os dois potes e as bilhas de barro da bilheira da copa, voltava à cozinha  e coava, com um pano grosso, o café fumegante. Quando minha avó acordava, Andrelina já tinha posto o café na mesa, que era arrumada com uma toalha branca com bordado da mesma cor e a faiança rústica.

“Hoje ela amanheceu acesa”, dizia minha avó ao meu avô, que ria da observação maliciosa.

E assim prosseguia a faina de Andrelina, já agora auxiliada por duas mocinhas órfãs que minha avó adotara como filhas e ensinara, conforme a tradição da família, as tarefas domésticas, exercitadas no tempo que sobrava com os estudos na escola paroquial.  Às 11 em ponto estava posto o almoço, meu avô à cabeceira, com seu ar grave e silencioso, minha avó à sua esquerda, e, em volta da mesa, os doze filhos e filhas. A cena se repetiria às 5 da tarde, durante o jantar.

A última tarefa de Andrelina era recolher, lavar, enxugar e guardar a louça do café com bolos que era servido às 7 horas.

Agora, Andrelina estava livre para a noite que estava apenas começando.

Então, ela voltava ao quintal, recolhia a água para o banho à luz da lua, banho demorado, perfumado com sabão de coco, auxiliado por buchas do mato para melhor limpeza das partes, e um composto de jaborandi para limpar e dar consistência aos cabelos para o penteado quando seco.

No quarto, Andrelina escolhe o vestido vermelho com uma flor branca bordada à altura do seio esquerdo e veste-se como uma rainha. 

Calça umas sandálias pretas que minha avó lhe dera de presente, contempla-se no espelho, e ri, em sinal de aprovação. Com um toco de batom, deixa os lábios vermelhos como sangue.  

Ela então usa o último recurso de sedução, um perfume que ganhou recentemente de um caixeiro viajante que a vira na loja do meu avô. Espalha o perfume pelo pescoço, atrás das orelhas, no pulso e nas mãos.

Arrumada, perfumada, sentindo-se uma deusa, Andrelina vai repetir o que faz todas as noites de 31 de dezembro há pelo menos vinte anos.

Abre a janela para deixar entrar a luz da lua, apaga a lamparina do  quarto, deita-se lentamente na cama e, em poucos minutos, dorme.

    

Comentários

  1. Lindo conto! Um desfecho paradoxal, surpreendente! Não há distinção entre "lethe" e "aletheia". A narrativa dorme na sequência descritiva até o ponto final. Alumbramento...

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  2. Muito bom! Essa relação que se estabelece entre ela e as pessoas a quem serve. A plenitude em que ela, de forma magistral e única, se embeleza e se recolhe em si. Gostei muito! Parabéns!!!

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  3. Delícia de leitura, Antônio Carlos.
    Feliz 2020!

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  4. Obrigado a todos. Aqueles que aparecem como "Unkown" precisam fazer o cadastro, que consiste apenas em fornecer o email para receber o aviso de cada novo post. É muito simples. Podemos identificar um dos dois "Unkowns"- do Luiz Mochel - porque ele faz o mesmo comentário no post do facebook. Abs.

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