Mundo grande e estranho
“Um
dia frio/ Um bom lugar pra ler um livro”. (Djavan)
Encerro
o ano na companhia do índio Rosendo Maqui. Sábio e justo,
“um pouco vegetal, um pouco homem, um pouco pedra”, esse índio é o líder da
comunidade de Rumi, nos Andes do norte peruano.
Ao seu lado, enquanto
ele desfia o novelo da memória, contemplo a imensidão da cordilheira e, aos
poucos, me familiarizo com o cotidiano desses índios que parecem felizes, com
seus ponchos e sombreros coloridos, seus mitos e suas lendas, nas terras férteis
do povoado onde cultivam milho, trigo, batata e a coca que os ajuda a suportar
a pressão daquelas altitudes.
Mas a aparente
felicidade dos indígenas de Rumi vai acabar quando ricos fazendeiros da região
se apossarem fraudulentamente das terras em que vivem e eles tiverem que buscar
outras paragens. “Vão a outros lugares, o mundo é grande”, lhes dirão os novos
donos das terras.
Rosendo Maqui é
o personagem central de “Grande e estranho é o mundo” (Paz e Terra, 1981, 424 páginas), o romance monumental do peruano Ciro Alegria
(1909-1967) que me conduz, neste último dia do ano, pelo universo mágico e assombroso das
serranias andinas, com suas alturas e seus abismos, onde sobrevive, em
condições adversas e até hostis, um povo que foge da nossa “civilização” desde
a chegada dos colonizadores.
A história transcorre nas primeiras décadas do século passado, mas poderia ser uma crônica dos
nossos dias, inclusive na Amazônia brasileira, onde as tribos indígenas estão ameaçadas pela cobiça despertada pelas riquezas naturais de seus territórios.
Os índios de
Rumi são perseguidos por um rico fazendeiro que se alia a juízes corruptos para
tomar-lhes as terras. Eles são obrigados a mudar-se para montanhas mais altas, impróprias para a
agricultura. E viverão uma saga de luta e resistência, até a extinção completa da comunidade.
“Grande e
estranho é o mundo” é a
obra-prima desse autor traduzido para mais de trinta idiomas e, no entanto, muito pouco conhecido no Brasil.
Alegria é mestre na descrição de paisagens, no apelo telúrico e na criação de personagens fortes, como esse Rosendo Maqui, na evocação do passado, na construção de uma história cativante, na riqueza da linguagem, do vocabulário, preservados em boa tradução.
Pode ser apenas impressão ligeira, mas creio ter visto nesse livro as chaves para ao menos duas obras-primas do meu cânone pessoal: "Cem anos de solidão" (1967), do colombiano Gabriel Garcia Marques, e "Grande sertão: veredas" (1956), do brasileiríssimo Guimarães Rosa, ambas publicadas muito depois de "Grande e estranho é o mundo"(1941).
Alegria é mestre na descrição de paisagens, no apelo telúrico e na criação de personagens fortes, como esse Rosendo Maqui, na evocação do passado, na construção de uma história cativante, na riqueza da linguagem, do vocabulário, preservados em boa tradução.
Pode ser apenas impressão ligeira, mas creio ter visto nesse livro as chaves para ao menos duas obras-primas do meu cânone pessoal: "Cem anos de solidão" (1967), do colombiano Gabriel Garcia Marques, e "Grande sertão: veredas" (1956), do brasileiríssimo Guimarães Rosa, ambas publicadas muito depois de "Grande e estranho é o mundo"(1941).
No Brasil, inexplicavelmente, a obra seminal de Ciro Alegria teve apenas duas edições: a de 1944, da Livraria José Olympio Editora, tradução
de Amadeu Amaral; e a de 1981, da Editora Paz e Terra, tradução de Olga Savary,
da qual me sirvo para esse ritual de prazer, que é a leitura de um grande livro.
Encerrar o ano
na companhia de Rosendo Maqui, o velho
patriarca dos índios espoliados do Peru, num “dia frio”, com "um bom lugar para
ler um livro”, é o melhor presente que eu poderia conceder-me para o ingresso em
um ano realmente novo.
Porque esse nosso mundo é mesmo grande e muito estranho.
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