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Mostrando postagens de 2020

Caminhando

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       Brasília, nesta época do ano, é um convite à transgressão das normas de isolamento.         Como permanecer em casa com essas manhãs de sol que, repentinamente, substituem os céus nublados de agora há pouco? Como recusar, com indiferença, o ofertório desses ares úmidos, quase neblina, tão raros em outras épocas, e essa vegetação exuberante, e esse céu azul sem nuvens?             Com suas avenidas largas, de pouco movimento, ciclovias, pistas para caminhadas, parques e jardins verdejantes e floridos por toda parte, meia dúzia de rios, riachos e ribeirões em seu entorno e, no centro de tudo, resplandescente, o lago Paranoá, a cidade nos tenta, todos os dias, a sair de casa, com a garantia de que não participaremos de aglomerações nem contribuiremos para a disseminação do vírus.             Basta pôr a máscara no rosto e sair por aí, dando bom dia às pessoas (à distância), às árvores, às flores e aos passarinhos...            Nessas horas, dá até pra imaginar que a vida é simples,

Santaninha, 178

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  E m vez de Santaninha, deveria chamar-se Dos Ausentes. Porque é de ausências que se faz essa pequena e estreita rua do centro histórico de São Luís do Maranhão.    Numa noite amena, de brisa leve, o coração em sobressalto, talvez porque ouço ao longe o rumor do mar, percorro essa rua, na esperança de reencontrar um mundo que, sei, não existe mais.    As casas são as mesmas. As mesmas fachadas, muitas delas decoradas com azulejos azuis, os mesmos beirais, platibandas, portas de madeira, cancelas de ferro, batentes e calçadas maltratados. Sufocaram os paralelepípedos com asfalto, que pena. Mas, e as pessoas que havia aqui, cadê as pessoas? Meu coração acelera.    Repentinamente, uma música invade os espaços. Pela janela da casa em frente, vejo Lindsey Campos executando ao piano meia cauda que trouxe da Alemanha a 5a. Sinfonia de Beethoven.    Olho para o sótão do casarão da esquina da Pespontão e vejo luzes e ouço vozes. Na penumbra, Valdelino Cécio assovia e toca pandeiro, o cigarro a

A casa derruída

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Não resistiu às chuvas do último inverno. Numa  madrugada de aguaceiro, com  raios e trovoadas, desabou, resignada, sobre si mesma. Primeiro, o telhado, com seus caibros e ripas desgastados e telhas recobertas pelo lodo do tempo. Em seguida, as paredes, dissolvidas pelo dilúvio. Em poucos segundos, tudo era apenas um monte de escombros encharcados na praça da matriz.  Nada ficou em pé, resumiu, com pesar, como quem com unica a morte de um parente próximo, o dono da peixaria qu e frequento em Brasília. Ele é a única pessoa nesta cidade que me dá notícias de Mangabeiras, a pequena vila, hoje grande município produtor de soja, onde nasci numa manhã chuvosa de dezembro.  A casa derruída de que me fala o peixeiro conterrâneo é a casa da minha primeira infância, o lar onde vivi até os 6 anos de idade. Enquanto ouço, mudo e paralisado, a notícia, ela, a casa, ressurge nítida na minha memória. Ficava na praça principal, em frente à igr eja. F oi mandada construir por meu pai, logo que se caso

LEITURA: Jorge Luis Borges

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A SUPERSTICIOSA ÉTICA DO LEITOR Jorge Luís Borges A condição indigente de nossas letras, sua incapacidade de atrair produziram uma superstição do estilo, uma distraída leitura de atenções parciais. Os que sofrem dessa superstição entendem por estilo não a eficácia ou ineficácia de uma página, mas as habilidades aparentes do escritor: suas comparações, sua acústica, os episódios de sua pontuação e de sua sintaxe. São indiferentes à própria convicção ou à própria emoção: buscam tecniquerías (a palavra é de Miguel de Unamuno) que lhes informarão se o escrito tem ou não direito de lhes agradar. Ouviram dizer que a adjetivação não deve ser trivial, e vão considerar que uma página está mal escrita   se não houver surpresas na junção de   adjetivos com substantivos, embora sua finalidade geral esteja cumprida. Ouviram dizer que a concisão é uma virtude, e   consideram conciso quem se demora em dez frases breves e não quem domina uma longa. ( Exemplos normativos dessa charla

Hemetério, o professor abolicionista de Codó

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Professor Hemetério dos Santos D epois de Maria Firmina dos Reis (1822-1917), reconhecida e celebrada como primeira escritora a tratar, na literatura brasileira, do tema da escravidão, chegou a vez de outro maranhense, o professor Hemetério José dos Santos (1858-1939), nascido em Codó, subir ao pódio das personalidades emblemáticas dos movimentos negros no Brasil. Assim como Maria Firmina (1822-1917), que ganhou notoriedade nos meios acadêmicos e estudantis depois de sua redescoberta nos anos 70 do século passado pelo poeta Nascimento Morais Filho, Hemetério dos Santos virou, repentinamente, tema de estudos em diversas universidades por sua contribuição, como professor e escritor, na luta pela inclusão do negro na sociedade e pelo fim do preconceito racial. Hemetério dos Santos: de fraque e cartola O curioso é que nenhum dos dois esteve na linha de frente do movimento abolicionista, liderado por José do Patrocínio, Luís Gama, André Rebouças (negros, como Hemetério), Jo