A vantagem do silêncio sobre a adesão do MA à Independência


Há uma vantagem inegável na ausência de celebrações oficiais na data do Bicentenário da Adesão do Maranhão à Independência do Brasil, que transcorre amanhã, 28 de julho. 

 

Com a indiferença e quase desprezo das autoridades e instituições culturais em relação a tão relevante episódio histórico, afastam-se riscos da reiteração de homenagens, desnecessárias e imerecidas, ao lorde escocês e herói da Marinha inglesa Thomas Cochrane, que já ostenta, para contrariedade dos maranhenses, o título de Marquês do Maranhão. Pois, a verdade é que nenhuma homenagem deve o Maranhão a essa figura em retribuição a serviços que haja eventualmente prestado em apoio à nossa luta pela Independência. 

Lorde Cochrane

 

Não somente porque, a instâncias de José Bonifácio, contratado pelo nascente império brasileiro para submeter as províncias que se opunham à emancipação do jugo português, tenha ele mesmo recebido, ou indiretamente por meio de descendentes, cada centavo do que se julgava merecedor. Nem mesmo por causa dos modos arrogantes com que se houve na segunda visita à Província, em 1824, quando obrigou a Junta da Fazenda a lhe entregar todo o dinheiro do combalido Tesouro maranhense, contado em 106 contos de réis, em pagamento de “presas de guerra” a que teria direito e eram contestadas pelo governo imperial. Foi uma extorsão humilhante que para sempre o descredenciou à consideração dos maranhenses.

 

Cochrane não merece honras de herói no Maranhão porque, segundo os registros históricos disponíveis, inclusive seu depoimento[1], aqui ele simplesmente não lutou pela Independência. Sequer disparou um único tiro, nem precisou desembainhar a espada ou acionar um canhão. Jamais praticou algum gesto de grandeza ou heroísmo, porque em verdade nenhuma resistência encontrou. 


É evidente que guerras podem ser vencidas sem o recurso de armas, mas pelo uso da alta diplomacia, por exemplo. A Bíblia conta, no Velho Testamento, o episódio dos judeus quando enfrentaram moabitas e amonitas, que os queriam destruir, apenas cantando hinos de louvor ao Senhor. Mas, no caso de Cochrane, não houve diplomacia nem cânticos sagrados contra os portugueses. O seu artifício foi a solércia, o embuste, como se verá mais à frente.

 

A atuação do escocês nesse episódio histórico é comparável – para usar uma imagem ao gosto popular no Brasil –, à do centroavante que entra em campo nos minutos finais do segundo tempo, altura em que seu time vence folgadamente a partida por 7 x 0, é convocado a cobrar um pênalti e, frente a um goleiro desesperado, amplia uma vitória já plenamente consumada.

 

 Quando Cochrane chegou a São Luís, no dia 26 de julho de 1823, na condição de Primeiro Almirante da Esquadra Imperial, o Maranhão já era quase todo independente. 

 

Como demonstra o Visconde Vieira da Silva em sua obra capital sobre a História da Independência no Maranhão[2], apenas São Luís e as vilas de Alcântara e Guimarães permaneciam, então, sob  relativo domínio da Junta Provisória que se mantinha fiel a Portugal. As demais (Na época, o Maranhão estava dividido em 11 vilas[3], com total de 158.893 habitantes), haviam aderido ao império brasileiro ou se encontravam submetidas a cerco das tropas independentes, constituídas por brasileiros do Maranhão, do Piauí e do Ceará, como era o caso de Caxias. 

 

De vitória em vitória, os defensores da nova ordem, lutando bravamente em todo o interior do Maranhão, já haviam instalado, no dia 20 de julho, na vila de Itapecuru-Mirim, uma Junta Provisória Independente, composta de sete membros, com governo civil e militar, e jurado fidelidade ao novo Império. Na ocasião, elegeram-se quatro membros da Junta, ficando os três cargos restantes reservados a representantes da capital da Província, para a qual os independentes emitiram, no dia 23 (três antes da chegada de Cochrane) um ultimato: 

 

Não é fora de alcance de V. Exas. a vantagem da nossa parte. Que forças tem essa cidade para se medir com as nossas inumeráveis tropas? Como se sustentará, estando de nós dissidente? Que gêneros formarão o seu comércio? V. Exas. bem têm observado a carreira rápida com que se tem adiantado o nosso sistema em quase toda a Província (...) Seja, enfim, qualquer que for a medida que V. Exas. queiram adotar neste caso, desenganamos a V, Exas., que o nosso acordo é responder aos europeus contrários, como em outros tempos respondemos aos holandeses, ou como os americanos responderam aos ingleses. [4]

 

A própria Junta de São Luís, presidida pelo bispo Joaquim de Nossa Senhora de Nazaré, já havia marcado para o dia 14 de junho a proclamação de sua adesão ao império. O ato foi suspenso na última hora por decisão unipessoal do comandante das Armas, Agostinho Antonio de Faria, iludido com a chegada de reforços portugueses.

 

São Luís estava sitiada, praticamente sem condições de resistência ao assédio das forças internas independentes (o abastecimento de carne e outros gêneros alimentícios que lhes eram fornecidos pincipalmente do Baixo Itapecuru tinham sido cortados e a fome já ameaçava a Ilha), quando, na madrugada de 26 de julho, Cochrane chegou sorrateiramente à Ilha, ostentando no mastro da Nau Dom Pedro I a bandeira portuguesa, em vez do pavilhão do Império. Com esse ardil, capturou, sem óbices, o brigue português Dom Miguel, que o abordara cordialmente, e, por meio do comandante da mesma embarcação, enviou às autoridades em terra o ultimato para a adesão, com a falsa informação de que a Esquadra Imperial estava a caminho. 


Mal recebeu o comunicado de Cochrane, a Junta concordou com a capitulação e, já no dia seguinte, seus integrantes foram comunicar-lhe a bordo a decisão de aderir ao Império. 

 

Apenas 24 horas depois, realizava-se, na sede da Câmara, a cerimônia de adesão, com salvas de canhões e aclamação popular. Mas o lorde sequer desceu a terra para o evento histórico. Nem participou do jantar que, à noite, a cidade iluminada, a Junta promoveu para celebrar o acontecido. 

 

Faltava eleger o governo provisório fiel ao Império. E o que fez o centroavante, quer dizer, o Almirante? Manteve os quatro membros da Junta de Itapecuru, assim legitimando-a, dando-lhe a primazia da proclamação da Independência, tratando de eleger apenas os ocupantes dos três cargos que ela havia reservado aos representantes indicados da capital, inclusive a presidência. A primeira Junta do Maranhão Independente era nada além de mera confirmação daquela que se formara no Itapecuru.

 

Atendidos os interesses do Império, Cochrane passou a cuidar dos próprios interesses. Então, confiscou embarcações e propriedades dos portugueses residentes no Maranhão e exigiu do Tesouro da Província pagamento de valor correspondente a esses bens. A Junta da Câmara recusou-se a efetuar o pagamento, justificando que, no Maranhão, ele não enfrentara guerra alguma e que as presas, se reconhecidas como tais, pertenceriam ao Império. Concordou, sim, em pagar 16.727 mil réis em moeda e 147.316 mil-réis confiscadas aos portugueses para pagamento dos soldos atrasados às tropas do Piauí e do Ceará – cerca de 8 mil homens –, que haviam lutado pela emancipação de Caxias. 


Cochrane considerou esse pagamento como parte do que a Província lhe devia. E foi com esse argumento que, um ano depois, retornou ao Maranhão para pilhar 106 contos de réis do Tesouro maranhense – dinheiro que nunca lhe pertencera. Para contrariedade do lorde, a questão das presas foi encaminhada ao arbítrio das autoridades na sede da Corte, no Rio de Janeiro, onde seria formado um Tribunal de Presas. 

 

Ainda assim, de volta ao Rio de Janeiro, Cochrane foi recebido com honras de herói pelo Imperador por suas vitórias nas províncias do Norte e Nordeste em favor da Independência. Pelo conjunto da obra, recebeu o já referido título de Marquês do Maranhão. 

 

Os que haviam sofrido e lutado verdadeiramente pela Independência no Maranhão, idealistas e guerreiros da própria terra, contando com reforços de tropas do Ceará e do Piauí, foram inteiramente ignorados e esquecidos pela História.

 

Portanto, às fanfarras em torno de um herói de fancaria, é preferível, neste 28 de julho, marco do Bicentenário da Adesão do Maranhão à  Independência do  Brasil,  o silêncio respeitoso aos que por nossa liberdade lutaram até com o sacrifício das próprias vidas.



[1]  Cochrane, Thomas John. Narrativa de serviços no libertar-se o Brasil da dominação portuguesa. Brasília. Edições do Senado Federal, 2003, 273 pág. 

[2] Silva, Luiz Antonio Vieira da. História da independência da Provincia do Maranhão (1822-1828).

[3] Lago. Antonio Bernardino Pereira do: Estatística histórico-geográfica da Província do Maranhão, Siciliano, São Paulo, 2001. As vilas eram as seguintes: Alcântara, Caxias, Guimarães, Itapecuru-Mirim, Monção, Paço do Lumiar, Pastos Bons São Bernardo, Tutóia, Viana e Vinhais. 

[4] Silva, já citado. Páginas 141 e 142)

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Guimarães Rosa nas alturas

Quanto vale um poeta?

Gonçalves Dias e a Independência do Brasil

Os amigos maranhenses de Guimarães Rosa

A poesia visceral de Jorge Abreu

Um governador no sertão

O Maranhão em Guimarâes Rosa