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Mostrando postagens de 2021

Phelipe, o papa e as cinzas

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Na Estação Central de Nápoles, os três conversam em torno de uma mala aberta estendida no chão.     A festa tinha acabado na véspera, com uma apresentação de Luciano Pavarotti no Teatro San Carlo. O grosso da comitiva viajara para Roma, levando o diploma da Unesco que conferia a São Luís o título de Patrimônio da Humanidade, e eles, como assessores do governo, permanecem em Nápoles cuidando de providências burocráticas, para embarcar de trem no dia seguinte. E ali estão os três na estação, em volta da mala, atordoados com o barulho dos trens chegando e partindo das plataformas. Phelipe revira seus pertences pela última vez. Fecha a mala, põe as mãos na cabeça, encolhe os ombros. “Roubaram mesmo todo o meu dinheiro”. Em vez de guardar no cofre do hotel os 600 dólares das diárias que lhe sobravam, como faz todo viajante precavido, ele os escondera entre as roupas, na mala.   Ronald olha o relógio e alerta que faltam apenas cinco minutos para a partida do trem. Puxando as bagagens, os trê

Fé no homem, fé na vida

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Sempre que relatamos aos amigos episódios edificantes, gestos de grandeza humana presenciados ou vividos no dia a dia, como o de Joaquim, o motorista que descobriu o endereço do meu trabalho para me devolver a carteira com documentos e dinheiro que esquecera um dia antes em seu táxi no Rio de Janeiro, somos advertidos de que essas atitudes são raras. No geral, as pessoas são desonestas, egoístas, e não perdem a oportunidade de tirar vantagem em tudo, dizem, e eu acabo concordando.  Mas a leitura, nesta véspera de Natal, de um livro fascinante deixou-me inclinado a acreditar que, felizmente, estamos errados. A maioria das pessoas, demonstra o autor, assemelha-se mais a Joaquim, o motorista honesto que cruzou meu caminho no Rio, do que ao bárbaro que enxergamos no desconhecido. O livro em questão é  Humanidade, uma história otimista do homem  (Crítica, 460 p., tradução de Cláudio Carina, 2021), do escritor e pensador holandês Rutger Bregman.  O autor começa demonstrando que a visão pessi

O poeta Bolaño chegou!

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Quem leu os romances do chileno Roberto Bolaño (1953-2003), principalmente  Os detetives selvagens , foi tocado pela poesia sutil e sedutora de que está impregnada toda a sua prosa. Considerado o maior romancista latino-americano de sua geração, Bolaño escreveu poemas durante toda a vida, mas publicou apenas dois livros do gênero, ambos em 2000, sem a repercussão obtida pelos romances.              Bolaño viveu em Santiago do Chile até os quinze anos, quando mudou-se para o México e iniciou sua produção literária. Retornou ao Chile em 1973, para apoiar o governo de Salvador Allende, que seria logo em seguida deposto por um golpe militar. Foi preso, deixou novamente o país e estabeleceu-se em Barcelona, onde produziu abundantemente. Depois de sua morte, em 2003, aos 50 anos, foram publicados o romance  2666 , considerado sua obra máxima, e o livro de poemas  A Universidade Desconhecida.  É esse   A Universidade Desconhecida   que acaba de chegar ao Brasil, em edição bilingue da Companhi

Humboldt, o inventor da natureza

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U m dia, Frederico II, rei da Prússia, perguntou a Alexander, um garoto impetuoso e inteligente que gostava de colecionar plantas, filho de um nobre de sua Corte, se ele pretendia conquistar o mundo, como fizera seu homônimo Alexandre, o Grande. O menino, conhecido também pela falta de modéstia, respondeu: "Sim, majestade, mas pelas ideias". Muitos anos depois, Alexander von Humboldt (1769-1859) haveria de lembrar aquele diálogo com o rei, pois a sua pretensão, simples arroubo infantil contado em família, se cumprira. Para seus contemporâneos, ele foi, depois de Napoleão, o homem mais famoso e admirado do mundo. Hoje, fora do ambiente acadêmico e dos movimentos ecológicos, Humboldt está quase esquecido, mesmo após a celebração, em vários países, em 2019, do aniversário de 250 anos de seu nascimento. Em 1799, aos 30 anos, esse filho da aristocracia prussiana (a Prússia era um extenso território que incluía a atual Alemanha), acompanhado do botânico francês Aimé Bonplant, cinco

LARA, O ANJO DE BRAZLÂNDIA

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    Fosse um místico ou um poeta, desses que em tudo veem coisas extraordinárias, eu provavelmente começaria essa conversa dizendo que Lara é um anjo. Ou uma fada. Assim como os querubins e as fadas, ela tem asas, adora voar à toa e descer à terra para se alimentar de frutas ou sementes. E produzir milagres.    Acontece que não sou místico nem poeta e, para ser franco, Lara é apenas uma arara. Uma arara vermelha, igual às que se veem com frequência em pequenos bandos ou solitárias, cruzando os céus do Cerrado.    E o milagre que conseguiu, bem, pode ser apenas um dos efeitos positivos dessa pandemia, foi o de provocar um até então desconhecido sentimento de união entre os moradores da área rural de Brazlândia, cidade satélite a cinquenta quilômetros do Palácio do Planalto, em Brasília.    Essa história começou no dia onze de novembro de 2019, quase dois anos atrás, quando Lara surgiu pela primeira vez num dos lugares mais bonitos de Brazlândia, o rancho Paraná, que visitei na manhã de

Amor e ódio no tempo da Balaiada

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D ois jovens maranhenses de Caxias abandonam o curso de Direito que frequentam na Universidade de Coimbra para filiar-se, no Porto, às tropas voluntárias de apoio à rainha Maria I de Portugal, filha de dom Pedro, ex-imperador do Brasil. Miguel, irmão de Pedro, usurpara o trono da sobrinha, e o país mergulhara em guerra civil.    Assegurada a permanência da rainha, Ivo, um dos maranhenses que por ela lutara, volta ao Brasil, fixa-se   no Rio de Janeiro e, em seguida, retorna a Caxias, onde reencontra Nunes, o antigo colega de Coimbra e das lutas no Porto. Para seu desgosto, o amigo, que trouxera do Porto a amante oriental Maia, está envolvido com sua irmã Angélica. O reencontro dos dois amigos, agora inimigos por causa desse triângulo amoroso, se dá no momento em que, em 1838, explode na vila de Caxias a Balaiada, a maior e mais violenta insurreição popular das primeiras décadas do Brasil independente.    A relação conflituosa que se estabelece entre amigos em função de suas escolhas po