Mororó e o pacto com o diabo




Parecia um personagem do realismo mágico de Garcia Márquez ou do pós-modernismo de Guimarães Rosa.

              Comerciante bem sucedido, morava com a família, a mulher e duas filhas, num casarão imponente, com calçada alta, fachada arrematada por platibanda decorada, seis portas e seis janelas que se abriam para duas ruas cruzadas ao pé da ladeira da Altamira.

            Na parte frontal da casa, ficava a loja, que visitei muitas vezes, aos onze, doze anos, onde ele vendia gêneros alimentícios, pólvora e ferramentas para uma clientela que incluía os moradores da cidade, fazendeiros, lavradores, tropeiros e índios do sertão.

            Lembro-me nitidamente de sua figura. Alto, branco, cabelos ralos, sobrancelhas grossas, sem camisa, com uma calça de mescla presa por cinto de couro cru, o mesmo couro das sandálias, atrás do balcão da loja, simpático, contando histórias e fazendo negócios.

Assim era Oton Mororó Milhomem, personagem da minha infância evocado há pouco em crônica publicada no site Turma da Barra pelo escritor Rubem Milhomem, meu colega na Academia Barra-Cordense de Letras.

Seu Mororó, como eu o tratava, tinha forte influência política. Nos anos 50, recepcionou naquele casarão o candidato presidencial Ademar de Barros.  Era contra a ditadura de 1964 e, por curto período, ocupou o cargo de delegado de polícia.

Pelo que conheci, era figura admirada, porém temida, em função  da aura de magia em que estava envolta a sua vida no imaginário popular.

            Dizia-se, em toda a cidade, sem pedir segredo,  que a razão do sucesso de seus empreendimentos – além da loja, tinha um pasto, uma rancharia, duas casas de tolerância e outros imóveis de aluguel – era a sua ligação com o demônio, com o qual estabelecera um pacto de vida e morte em troca da fortuna.

Como Riobaldo e Hermógenes, em Grande sertão: veredas, era um pactário.

Muitos garantiam que ele abrigava em casa um cão vira-latas, trazido de uma fazenda das margens do riacho Alpercatas, que tinha a particularidade de exibir na boca um reluzente dente de ouro. E que, ao ganir, o cão esboçava um sorriso semelhante ao dos humanos. Por isso, ninguém queria vê-lo. Eu mesmo nunca o vi e tinha pavor de ser confrontado o com o seu sorriso diabólico e o seu dente dourado.

Também havia relatos sobre o diabo que ele mantinha preso numa garrafa guardada num quarto escuro daquele casarão.

Em noites de lua cheia, Seu Mororó fora visto algumas vezes subindo a ladeira do Calvário, esgueirando-se pelo mato, transformado num enorme porco cinzento.

Uma de suas filhas tinha fama de ganhar quase todas as apostas do Jogo do Bicho que corria aos sábados na periferia da cidade. A versão corrente era a de que o diabo da garrafa lhe dizia que bicho iria dar naquela semana.

Essas histórias fantasiosas eram alimentadas, em grande parte, pela indiferença que  Seu Mororó manifestava em relação à Igreja, que não frequentava, e por sua relação com negros, prostitutas e índios, com os quais se identificava. Ele também não se preocupava em desfazer fantasias. Antes, parecia cultivar aquela aura mitológica.

Era amigo de Zabelona, a dona do terreiro de punga que todos os anos, a 13 de maio, organizava, com a sua ajuda e a sua presença,  rodas de tambor em homenagem à  princesa Isabel.

Como dono de cabarés, era amigo de prostitutas, que aviavam no seu comércio as mercadorias que depois pagariam com os ganhos da profissão.

Em 1978, quando ele morreu, aos 73 anos, eu já não vivia em Barra do Corda, mas Rubem Milhomem me informa que o seu sepultamento foi uma apoteose.

Em sua homenagem, formou-se, a caminho do cemitério, um enorme cortejo de prostitutas e negros que, cantando e rezando,  se revezavam  para segurar-lhe as alças do caixão.

Uma cena que Glauber Rocha provavelmente imortalizaria em Deus e o Diabo na Terra do Sol, a partir do mundo real da minha infância feliz naqueles sertões desamparados.



Comentários

  1. O jornalista Antônio Carlos Lima, nessa sua 'Água de cacimba', vira-e-mexe resgata um personagem ou um fato pitoresco de nossa Barra do Corda. Desta feita, estamos de frente com O místico e mítico Oton Mororo Milhlmem. Só lendo para melhor conhecê-lo!

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  2. O jornalista Antônio Carlos Lima, nessa sua 'Água de cacimba', vira-e-mexe resgata um personagem ou um fato pitoresco de nossa Barra do Corda. Desta feita, estamos de frente com O místico e mítico Oton Mororo Milhlmem. Só lendo para melhor conhecê-lo! Fernando Braga

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  3. Caro Antonio Carlos,

    Recebemos o link de sua crônica no inicio do almoço, já perto das 14 horas, com as mudanças de rotina estamos mudando nossos horários.
    Kadyja de imediato começou a ler em voz alta, hora rindo, hora complementando, hora com espanto, também tinha muito medo de ver o cachorro com dente de ouro
    A leitura dessa bela crônica transformou um corriqueiro almoço de segunda em momento de prazer e alegria, novas histórias e causos contados, fatos lembrados. E como se fala em terras goianas almoço com muito converseiro.
    A narrativa mostra bem a áurea de mistério que envolve esta figura quase ficcionista de Barra do Corda e as ótimas comparações de grandes personagens do realismo fantástico complementam este entendimento.
    Obrigado por nos trazer mais um ótimo texto e pelos bons momentos que nos propiciou.

    Forte abraço.

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  4. Muito obrigado, Norton, por suas generosas palavras. Vcs me honram com a leitura desses textos modestos. Um grande zbraço

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  5. Esse Mororó era um dos bons, não?

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