Phelipe, o papa e as cinzas



Na Estação Central de Nápoles, os três conversam em torno de uma mala aberta estendida no chão.
 

 

A festa tinha acabado na véspera, com uma apresentação de Luciano Pavarotti no Teatro San Carlo. O grosso da comitiva viajara para Roma, levando o diploma da Unesco que conferia a São Luís o título de Patrimônio da Humanidade, e eles, como assessores do governo, permanecem em Nápoles cuidando de providências burocráticas, para embarcar de trem no dia seguinte.


E ali estão os três na estação, em volta da mala, atordoados com o barulho dos trens chegando e partindo das plataformas. Phelipe revira seus pertences pela última vez. Fecha a mala, põe as mãos na cabeça, encolhe os ombros. “Roubaram mesmo todo o meu dinheiro”. Em vez de guardar no cofre do hotel os 600 dólares das diárias que lhe sobravam, como faz todo viajante precavido, ele os escondera entre as roupas, na mala. 


Ronald olha o relógio e alerta que faltam apenas cinco minutos para a partida do trem. Puxando as bagagens, os três disparam correndo por um corredor sem fim. Quando chegam, esbaforidos, à área de embarque, descobrem que estão na plataforma errada. E que os cinco minutos haviam se esgotado. Perdem o trem. O trem e o dinheiro da mala!     


Como só haverá outra partida para Roma oito horas depois, o jeito é alugar um carro. 


É dezembro, faz muito frio, as paisagens italianas são deslumbrantes, a viagem compensa o aborrecimento. Param o carro em frente a uma lanchonete e descem para comer algo. Na volta, percebem um papel no para-brisas do carro. Ronald pega o papel e lê o que nele está escrito: “Dal esporro sul cruscoto”. Phelipe, que, como os outros dois, nada sabe de italiano, diz, brincando: “Só faltava essa. Mas ninguém vai dar um esporro em meu cruscotto, não”. 


Pouco mais de duas horas de viagem, os três estão em Roma, instalados num hotel perto da Embaixada do Brasil. À noitinha, Phelipe resolve sair sozinho, desolado pela perda do dinheiro. Entra numa pizzaria, recosta-se ao balcão e esfrega as mãos no sobretudo desgastado e pobre. Sente um pequeno volume na dobra do casaco, arregala os olhos e diz: “Não acredito!” É o dinheiro, que ele havia escondido, não na mala, mas no sobretudo que deixara acomodado numa poltrona no hotel! 


Volta feliz da vida para comunicar aos amigos o achado e se maldizer por haver pensado mal dos camareiros de Nápoles. Os três comemoram, ele se deita, compulsa o pequeno dicionário de italiano que leva na mala para ver o significado das palavras do panfleto deixado no para- brisas do carro. Não, não é um insulto, descobre; apenas um aviso para deixar o papel exposto (esporro) no painel do automóvel (cruscotto)!


Na manhã seguinte, o trio resolve fazer um tour pela cidade. Destino inevitável: a Praça de São Pedro, o Vaticano. Antes de entrar na catedral, eles contemplam a praça monumental, depois admiram os souveniers. E então ouvem, pelo alto-falante, uma voz que lhes parece familiar. Sim, é o papa, grita alguém. Correm, seguindo a corrente formada pelos turistas, e avistam da praça, numa das janelas da igreja, o Papa João Paulo II.  E, durante os 15 minutos seguintes, deixam-se envolver no êxtase da multidão. 

 

Entram na catedral no momento em que começa uma missa celebrada por uma dezena de cardeais. A música de um coral, acompanhado pelo órgão secular, domina o ambiente. Os três andam devagar, emocionados diante de tanta beleza: a Pietá, de Michelangelo, pequena e majestosa, a cúpula decorada de azulejos cobrindo como um céu o baldaquino gigantesco de Bernini, o mosaico da transfiguração, de Rafael, os cantos celestiais. Os três tudo ouvem e contemplam em silêncio. Entreolham-se. Abraçam-se. Felipe está chorando.


Depois da missa, resolvem perambular pela cidade, até que chegam à Praça de Espanha. Descem os 135 degraus da famosa escadaria e vão jogar moedas na fonte da Barcaccia, cada um guardando segredo sobre o que pede no ritual dos desejos. Saem novamente pelas ruas, lépidos e felizes, quando, mais uma vez, acontece o inesperado.

 

 

Uma multidão começa a aplaudir e gritar, eles se aproximam, e quem está novamente à frente deles, a poucos metros, protegido pelos vidros do papamóvel? Sim, ele mesmo, João Paulo II, que horas antes tinham visto na janela da basílica. É 8 de dezembro, dia da Imaculada Conceição, e o Santo Padre acaba de depositar flores e fazer orações aos pés da estátua da Virgem erguida naquela praça, seguindo uma tradição. No tumulto que se forma, os três conseguem fazer apenas uma foto (acima) do papa que depois viraria santo.

Em Roma, com o papa. Duas vezes, no mesmo dia! 

                                               ***

 

No finalzinho de novembro, recordamos, Luis Phelipe Andrés e eu, as aventuras que vivemos, juntamente com Ronald de Almeida Silva, entre Nápoles e Roma, naquele inverno de 1997. Pela voz firme e pelo bom humor que transmitia ao telefone, nem parecia estar doente. Rimos muito. Ele estava feliz e esperançoso com o tratamento. 

 

Encontrava-me em São Luís no dia em que ele partiu, 4 de dezembro. Fui ao velório do seu corpo na Academia Maranhense de Letras. E ali, ao lado do esquife, lembrei o episódio do dinheiro sumido, do seu paletó pobre e surrado, de nossa viagem de Nápoles a Roma, de nossos encontros improváveis com o papa.

 

Não assisti à cerimônia de deposição de suas cinzas na Baía de São Marcos. Mas como se cumpriu assim o seu desejo, sempre que olhar para o mar do Maranhão sentirei ali, viva, pulsante como as ondas, a sua doce presença. Velando pela cidade de São Luís, que tanto amou e que lhe deve, em grande parte, a restauração de seu centro histórico e o título de Patrimônio Mundial, consagrado naquela viagem inesquecível.    

 

 

    

 

 

Comentários

  1. Uma beleza de evocação dessa figura ilustre que foi o Phellipe Andrés, a quem, infelizmente, não tive a alegria de conhecer. Mas que revive, Antônio Carlos, pelo teu talento imenso de narrador.

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  2. Amei esse texto! Uma bela homenagem a Phelipe Andres, que jamais o esqueceremos.

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