Fé no homem, fé na vida


Sempre que relatamos aos amigos episódios edificantes, gestos de grandeza humana presenciados ou vividos no dia a dia, como o de Joaquim, o motorista que descobriu o endereço do meu trabalho para me devolver a carteira com documentos e dinheiro que esquecera um dia antes em seu táxi no Rio de Janeiro, somos advertidos de que essas atitudes são raras. No geral, as pessoas são desonestas, egoístas, e não perdem a oportunidade de tirar vantagem em tudo, dizem, e eu acabo concordando. 


Mas a leitura, nesta véspera de Natal, de um livro fascinante deixou-me inclinado a acreditar que, felizmente, estamos errados. A maioria das pessoas, demonstra o autor, assemelha-se mais a Joaquim, o motorista honesto que cruzou meu caminho no Rio, do que ao bárbaro que enxergamos no desconhecido. O livro em questão é Humanidade, uma história otimista do homem (Crítica, 460 p., tradução de Cláudio Carina, 2021), do escritor e pensador holandês Rutger Bregman. 

O autor começa demonstrando que a visão pessimista do homem está consagrada no cânone ocidental – do primeiro historiador, Tucídides, a Hobbes (o homem é o lobo do homem), de Agostinho (o homem nasceu no pecado) a Maquiavel (os homens são ingratos, volúveis, hipócritas), passando por Nietzsche e Freud. 

Como Rousseau, Bregman acredita que o homem primitivo era bom. A civilização, que trouxe a noção de propriedade, a agricultura, o capitalismo, o teria transformado nesse ser egoísta e interesseiro que vemos. Segundo ele, leis e instituições nascem do pressuposto de que as pessoas não merecem confiança. Para as religiões, nascemos com o pecado. O capitalismo em todos vê o interesse pessoal. Até os ambientalistas enxergam o homem como uma praga destruidora. 

Contra a ideia dominante de que o ser humano está mais inclinado para o mal, como teorizou Hobbes, o autor vale-se de estudos em diversas áreas da ciência - da biologia à psicologia, da arqueologia à filosofia e à história - e da análise de fatos e comportamentos sociais recentes e atuais, para tentar provar, com argumentos consistentes, que, ao contrário do que se diz e escreve, o homem está programado para o bem, a solidariedade e a compaixão. 

Em situações de catástrofes e desastres naturais e mesmo durante as guerras, por exemplo, as pessoas geralmente não reagem com descontrole, desespero ou selvageria. Nesses momentos formam-se redes de solidariedade imprevistas. 

Na Alemanha, no final da Segunda Guerra Mundial, quando as cidades foram bombardeadas e parcialmente destruídas pelas Forças Aliadas, apesar da dor e do sofrimento infligidos, os alemães seguiram uma vida quase normal, as crianças brincavam nas ruas, todos procurando ajudar-se uns aos outros. Não surgiram o caos e o pânico, as pessoas não saíram às ruas saqueando as casas destruídas, o moral da população não foi abatido, como esperavam os aliados. 

No final da Primeira Guerra, no Natal, soldados ingleses deixaram suas trincheiras perto de La Chapelle-dÁrtentières, cruzaram o território inimigo e foram confraternizar com os alemães. Cada um em sua língua, alemães e ingleses cantaram o Feliz Natal (“The First Noel” e “Tannenbaum”) e trocaram presentes, numa trégua improvisada. Algo inimaginável no campo de batalha. 

Bregman desconstrói a suposta verdade contida no romance O Senhor das moscas, o clássico de William Golding que narra a história de um grupo de crianças sobreviventes de um desastre aéreo, isoladas numa ilha perdida do Pacífico. No romance, visto por leitores do mundo inteiro como um retrato da natureza humana , a competição, o egoísmo e o ódio afloram na minúscula sociedade de crianças. Bregman duvidou dessa possibilidade e foi atrás de uma história real de crianças náufragas numa ilha deserta. E a encontrou. 

O que ocorreu em outubro de 1966 na minúscula ilha de Ata, no Pacífico, onde seis meninos sobreviveram sozinhos durante 18 meses, foi exatamente o contrário: eles desenvolveram laços de amizade e lealdade para sobreviver, até serem resgatadas. 

Da pré-história aos dias atuais, são inúmeros os exemplos elencados que contrariam a tese da maldade e do egoísmo inatos das pessoas. O autor diz que somos levados a pensar que uma pequena minoria de disseminadores do ódio reflete toda a humanidade. Ele cita os trolls anônimos na internet, responsáveis por todo o veneno destilado no Twitter e no Facebook. 

Se as instituições, empresas, governos partissem do princípio de que todos são naturalmente bons, surgiria uma nova sociedade, mais saudável e próspera. O professor que acredita em seus alunos, o empregador que confia em seus empregados e tem sobre eles uma visão positiva, os presídios que tratam bem os apenados, os governos que cuidam bem dos cidadãos, todos promoveriam uma verdadeira revolução, como as que as que o autor identifica em várias partes do mundo. 

Para Bregman, acreditar na humanidade, na generosidade e na colaboração entre as pessoas é uma postura realista. E tal comportamento tem enormes implicações para a sociedade. 

Humanidade acendeu em mim uma luz de otimismo e esperança. Quando lia suas últimas páginas, uma notícia na internet chamou-me a atenção. Na última segunda-feira, 20, na cidade de Xereré, em Santa Catarina, o pintor Valdir Ribeiro realizou uma rifa de seu Chevette 1978 para custear as despesas do tratamento contra o câncer da mulher. 

No mesmo dia, Valdir foi entregar o carro ao vencedor, Vinícius Moraes, gerente de uma dedetizadora. Para sua surpresa, Vinícius, que já teve problema de saúde semelhante na família, devolveu-lhe o carro. “Não tem como um ser humano segurar um prêmio desse. Acredito que o mundo precisa ter mais amor ao próximo, mais empatia e respeito pelo ser humano”, disse o vencedor da rifa. 

Portanto, me pergunto: como não admirar gestos como o de Joaquim, o motorista honesto do Rio de Janeiro que me devolveu a carteira, e o de Vinícius, que comprou uma rifa apenas para ajudar o semelhante? Se atitudes como essas não são raras, como não acreditar na humanidade? 

O livro de Bregman talvez possa ajudar o leitor, como o fez a mim, a iniciar o Ano Novo com mais otimismo, esperança e confiança. 

Feliz Natal a todos!

Comentários

  1. Belíssima reflexão nos traz este seu texto. Historicamente vivemos em conflitos e disputas irracionais.
    Nestes últimos tempos, em particular, as disputas acirradas têm se tornado a tônica.
    Mas sempre estivemos e estamos, permeados de pessoas e grupos preocupados e fazendo o bem de forma natural e espontânea.
    Está visão otimista do homem nos traz esperança para continuarmos.....

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