Relato de um náufrago



    Este livro é uma viagem. Seu autor, navegante experimentado nos sete mares da boa prosa de ficção, como bem atestam seus dois livros anteriores de contos, ambos premiados, conduz o leitor numa expedição em busca de um tempo que ele sabe irremediavelmente perdido. 

 

Como o poeta Gonçalves Dias, seu conterrâneo, que sucumbe com seu navio nas águas tormentosas dos Atins quando já avista as palmeiras da terra natal a que tenta retornar depois do exílio, Jozias Benedicto faz, neste Aqui até o céu escreve ficção, vencedor do Prêmio Literário 2018 do Governo do Maranhão, a viagem regressiva à São Luís da infância e da juventude, consciente de que também não a alcançará plenamente. 

 

A cidade, as pessoas, as vozes, os cheiros, os sabores de outros tempos sobrevivem apenas em sua memória e em sua imaginação. Dessa matéria difusa, feita de lembranças e invenção, nascem os excelentes contos aqui reunidos. A vida, na definição sempre lembrada de García Márquez, “não é a que a gente viveu, e sim a que a gente recorda, e como recorda para contá-la”. 

 

No início desta viagem, Jozias Benedicto, a exemplo dos modernos comissários de bordo, informa aos passageiros/leitores os procedimentos e as instruções básicas do voo/leitura, com epígrafes escolhidas a dedo: a do padre Antonio Vieira, com a autoridade de quem viveu e pregou em São Luís, advertindo que ali até o tempo é enganoso; a de José Saramago, para quem “é preciso sair da ilha para ver a ilha”; e a de Fernando Pessoa, com um alerta importante: “O poeta é um fingidor”, que é um aviso para o caráter fictício do que muitas vezes será confundido com realidade. 


Construídos com a leveza da crônica e a sonoridade da poesia, características de todo bom conto, as dezesseis narrativas deste livro, incluído o prólogo, levam a um passeio pela São Luís dos anos 60, 70 do século passado, período marcado pela ditadura militar. 

 

Mas a cidade surge apenas como moldura para o universo de histórias com os ingredientes inescapáveis da condição humana: amor, inveja, mentira, traição, drama e tragédia. No bem urdido conto que dá título ao livro, o narrador/autor é um estudante que, em fuga da repressão política, confronta-se, no final, com uma revelação desconcertante. Os finais surpreendentes são, aliás, uma marca de quase todos os contos. 

 

Há contos que, pela atmosfera mágica em que trafegam, como A Cura, lembram Borges, a começar pela epígrafe, um verso de um poema de Arlete Nogueira da Cruz, em Litania da velha: “O punhal enfiado no desvão da memória perfura o horror”. A Biblioteca é um conto breve, no qual o narrador defunto pede às traças da Biblioteca Benedito Leite que destruam o livro de versos que escreveu para a amada. Em Volta ao Lar, a história do homem que “nasce mulher”, faz as intervenções cirúrgicas e hormonais necessárias para a mudança de gênero, e, ao final, proclama sua “real” identidade. 

 

Ingleses nos Trópicos, um conto narrado por diversas vozes, recorda os tempos áureos da Western Telegraph Co., a empresa inglesa contratada pelo governo brasileiro para instalar, operar e manter o cabo submarino que ligava o Maranhão aos demais estados costeiros, à Europa e aos Estados Unidos. Os ingleses que operam o cabo instalam-se num belo casarão na praia do Olho dÁgua (hoje um hospício) e acabam enredados numa teia de amores com os nativos da ilha. 


Salão Pompeo é um conto denso, nostálgico e melancólico. Os Dias Gordos, que parece seguir a mesma linha, termina de modo hilariante. Um dos textos mais extensos, Tambores, narra uma história trágica que homenageia o bumba-meu-boi, a começar pelos nomes dos personagens, Francisco e Catarina, os protagonistas da festa mais popular do Maranhão. 

 

Em todo o livro, Jozias Benedicto mostra o domínio da linguagem e da melhor técnica narrativa, como se vê também em 2161, uma distopia, a descrição de São Luís num futuro longínquo marcado pela opressão. 

 

Como uma chave para a compreensão dessa envolvente viagem literária, o último texto de Aqui até o céu escreve ficção traz como epígrafe uma citação da Girândola de amores, de Aluísio Azevedo, outro conterrâneo do autor: “Triste viagem é a da vida, que termina sempre por um naufrágio.”


Texto escrito como prefácio do livro Aqui até o céu escreve ficção. Jozias Benedicto. Editora Patuá, São Paulo, 2020.R$ 40,00.


                                                 ***

Jozias Benedicto é escritor, artista visual e curador, com especialização em Literatura, Arte e Pensamento Contemporâneopela PUC-Rio. Maranhense de São Luís, de onde saiu aos 15 anos, vive no Rio de Janeiro. Filho de Genu e Antonio Moraes Corrêa, família tradicional oriunda do Piauí. Trabalha com videoinstalações, performances e pinturas que unem palavra e artes visuais.

Seu primeiro livro de contos, Estranhas criaturas noturnas (2013), foi finalista do Concurso SESC de Literatura 2012/2013. Como não aprender a nadar (2016) conquistou o Prêmio de Literatura do Governo de Minas Gerais 2014 na categoria Contos e o Prêmio Moacyr Scliar 2019, da Diretoria da UBE-RJ.

Também recebeu premiações da Fundação Cultural do Pará (2018) por Um livro quase vermelho e da Fundação Cultural do Maranhão (2018) por Aqui até o céu escreve ficção. Lançou dois livros de poesia, Erotiscências & embustes (2019) e A ópera náufraga (2020).

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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