As máscaras


Era quase meia-noite, fazia muito frio, as ruas estavam semidesertas. O silêncio era quebrado apenas pelo barulho dos caminhões de lixo e das máquinas que, naquele trecho de Las Condes, lavavam e perfumavam as calçadas com lavanda. Um casal deixa um pequeno prédio da calle Napoleón, caminha até a Apoquindo e, na primeira lixeira, deposita o material pesado que leva em duas sacolas. São três máscaras de madeira escura, ricamente entalhadas. O casal retorna rapidamente ao prédio, e a noite prossegue, glacial, em Santiago do Chile.

 

         Aquele tinha sido um dia estressante para o casal: minha mulher e eu. Pela manhã, eu havia recebido um diagnóstico assustador do médico gastroenterologista que me atendera em seu consultório em Providência. Depois de observar várias vezes o resultado dos exames, perguntou se eu me sentia bem, se sofria de dores, ânsias de vômito, tonturas. Respondi que não, tudo o que eu sentia eram refluxos. Depois de comer, beber um vinho, sentia que a comida permanecia no estômago e, às vezes, assomava à garganta, vinha à boca. Ele me olhou demoradamente e voltou a consultar os papeis. 

 

Minha mulher pegou a minha mão e começou a chorar. Ele disse: “Tenham calma, tudo se trata, tudo se cura, vou pedir novos exames, não pode ser verdade”.  Não precisou usar a palavra terrível.

 

         Silenciosos e devastados, deixamos o consultório e retornamos ao laboratório, para novos exames. Em seguida, fomos para casa, cruzando largas avenidas arborizadas, antes tão belas, mas agora tão feias e tristes. Desnecessário descrever o resto do dia de alguém condenado à morte. 

 

Eu estava em Santiago havia dois anos, como diretor do Centro de Estudos Brasileiros da Embaixada do Brasil, e me sentia feliz, vivendo com minha família num país em que se lavavam as calçadas com lavanda nas madrugadas. O Chile é um país moderno, rico, embora marcado pelas mesmas desigualdades sociais de seus vizinhos. Eu morava numa das melhores comunas da cidade, meus filhos estudavam em ótimos colégios e o meu trabalho, de promoção cultural do Brasil, era apaixonante. Mas, morrer em Santiago, longe de casa, jamais! E foi naquela tarde que tomamos a decisão de voltar ao Brasil.

 

Na sala de nosso apartamento, na calle Napoleón, acompanhado de meus filhos, depois de chorar, observei que as três máscaras africanas penduradas na parede estavam desalinhadas e fui aprumá-las. Aproveitei para ler as inscrições que havia no dorso de cada uma delas. E lá estava escrito: “Máscara mortuária da região do.....”. Nas outras, a mesma informação. 

 

A essa altura, Sandra já está ao meu lado, apreensiva, e pergunta: “Por que você não me disse que essas coisas eram máscaras mortuárias?” Mas, como, redargui, se nem eu sabia. Sabia. Eu as havia comprado poucos dias antes numa exposição de arte africana no shopping Arauco. Eram obras de arte impressionantes e achei que tinha feito um boa aquisição, apenas isso. 

 

Mas ficou subentendido, na comunicação dos nossos olhos, sem que trocássemos uma palavra, que ali estava a causa do diagnóstico médico da manhã: as máscaras mortuárias utilizadas por tribos africanas em cerimônias fúnebres! Eu trouxera para casa a indumentária da morte! 

 

Esperamos apenas a noite baixar. Retiramos as máscaras da parede e as pusemos  numa sacola. Saímos à rua, onde o frio era lancinante, para depositá-las na caçamba de lixo da Apoquindo. Não queríamos ser vistos naquela situação ridícula. Eu não tinha superstições e era homem de pouca fé. Mas lembrei de uma frase conhecida de Millôr Fernandes: “A gente só é sinceramente ateu quando está bem de saúde”... O que deve valer também para a superstição.

 

Decidimos, no dia seguinte, que eu não voltaria ao médico e nem mesmo ao laboratório para saber o resultado dos novos exames. 

 

Quinze dias depois estávamos de volta ao Brasil. Estabelecemo-nos no Rio de Janeiro, onde eu faria os exames e me submeteria ao tratamento, para depois, quem sabe, ir morrer em São Luís do Maranhão. 

 

O resultado dos exames saiu uma semana depois. Não abrimos o envelope. Fomos levá-lo ao meu médico, em Botafogo. No caminho, avistei o Cristo Redentor, que lindo, braços abertos sobre a Guanabara, e rezei. O médico abriu o envelope, olhou-me em silêncio, deu-me um abraço e disse: “Parabéns! Você tem uma crise de refluxo gostroesofágico. Vamos eliminar café, cigarros, refrigerantes e tomar esses antiácidos”...

 

Depois desse dia abençoado, telefonei algumas vezes para o Serviço de Achados e Perdidos da empresa de lixo de Santiago, mas ninguém me deu notícias de minhas lindas máscaras africanas... 

 

 

         

Comentários

  1. Muito bom. Tenso no início, engraçado no final. Lembro bem desse episódio. Abraços

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