Santaninha, 178


 

Em vez de Santaninha, deveria chamar-se Dos Ausentes. Porque é de ausências que se faz essa pequena e estreita rua do centro histórico de São Luís do Maranhão. 

 

Numa noite amena, de brisa leve, o coração em sobressalto, talvez porque ouço ao longe o rumor do mar, percorro essa rua, na esperança de reencontrar um mundo que, sei, não existe mais. 

 

As casas são as mesmas. As mesmas fachadas, muitas delas decoradas com azulejos azuis, os mesmos beirais, platibandas, portas de madeira, cancelas de ferro, batentes e calçadas maltratados. Sufocaram os paralelepípedos com asfalto, que pena. Mas, e as pessoas que havia aqui, cadê as pessoas? Meu coração acelera. 

 

Repentinamente, uma música invade os espaços. Pela janela da casa em frente, vejo Lindsey Campos executando ao piano meia cauda que trouxe da Alemanha a 5a. Sinfonia de Beethoven. 

 

Olho para o sótão do casarão da esquina da Pespontão e vejo luzes e ouço vozes. Na penumbra, Valdelino Cécio assovia e toca pandeiro, o cigarro aceso no cinzeiro, o pente Carioca no bolso, o Antônio Nelson canta, batendo palmas, no compasso. Dormindo no sofá, Pixixita sonha com Paris e com mulheres... 

 

Na esquina do mesmo prédio, o bar do Cristino, que vende fiado apenas pelo prazer de contar aos outros fregueses que o seu devedor não é exatamente um bom pagador. Por onde anda o Cristino, meu Deus? 

 

A poucos metros fica a casa de Chico Maranhão, onde ele ensaia o show de lançamento do LP que acaba de gravar pela Marcus Pereira, depois do sucesso estrondoso de Gabriela, no festival da Record, em São Paulo. 

 

Passam os pregoeiros, vendendo cuscuz Ideal, pamonha quentinha, derresol... Derrê... sol! Ideaaal! 

 

Avanço alguns passos e chego à casa de Seu Rui e Dona Hilda Habibe. Na garagem da frente, Sérgio toca ao violão uma canção recente, Eulália, enquanto Zezé, que não toca nenhum instrumento, estuda flauta. Em volta estão Rodrigo, Mochel... A poeta Laura Amélia Damous acaba de chegar, pedindo para cantar um bolero. 

 

Lembro do Paulo Sérgio, o caçula da casa, que tão cedo se foi desta vida descontente... 

 

Alcanço a casa do doutor Filgueiras. Juiz, depois desembargador, membro da Academia Maranhense de Letras. Ele está sentado no batente da casa e conversa com o filho Eduardo e as três filhas. Dou boa noite e sigo em frente. 

 

No casarão ao lado, ouço minha tia Zazá Holanda, com sua voz grave e imperativa, dizer: “Geraldo, chama os meninos e vem jantar. Até o Pergentino já chegou do jornal!” Este é meu pouso predileto. Santaninha, 178. Uma meia-morada com fachada em azul e frisos brancos, cancela e porta vai- vem no corredor. Para mim, aquele era o centro não de São Luís, mas do universo. 

 

Depois da aula na Faculdade de Comunicação, que funcionava no ILA, na Praça Gonçalves Dias, era correr para a casa de Tia Zazá, sentar-me à porta com meus primos-irmãos Geraldinho, meu melhor amigo, Holandinha, Nacor, Rialdo, Mauro, Dedé, João... 

 

Irmã do Rui e do Sérgio, Vânia, aos 15 anos, linda e recém-saída do banho, participa da roda, mas, para nossa tristeza, logo passa Zé de Kiti com seu Fusca branco para arrebatar a nossa musa. 

 

Ao chegar em frente àquela casa, nessa noite de encontro com fantasmas, grito bem alto o nome de meus tios e meus dois primos que se foram deste mundo. Tio Geraldo, Tia Zazá, Joãozinho, Geraldinho!... Mas ninguém me ouve, ninguém responde. Apenas o vento sopra indiferente da baía de São Marcos. 

 

Avanço para cumprimentar, na casa contígua, seu Gaspar, pai do Gasparinho, um garoto gordinho que não se enturma muito com a gente, porque a sua turma é do Olho d’Água. Na casa em frente, uma dúzia de rapazes e moças conversa em francês. É que ali funciona a Aliança Francesa. Bon soir, arrisco. E todos respondem: Bon soir, mon bon garçon! 

 

O Dr. Leovegildo Freitas da Silva, que mora no casarão seguinte, saiu com os filhos – Léa, Leo I, Leo II e Leo III – para visitar um conterrâneo de Barra do Corda no Cutim. Por isso, não me demoro ali em frente e, rapidamente, chego à porta-e-janela do professor Orlandex. Do interior da casa, ouve-se, de uma radiola de pés de palito colocada na sala de frente, uma música de Mahler. 

 

Minha caminhada prossegue na Santaninha até a Afogados, onde cruzo com o poeta Nauro Machado descendo da Viana Vaz em direção à Praça João Lisboa, declamando poemas para os sobrados vazios. Ele nem percebe que o ator Aldo Leite, que mora ali pertinho, lhe dá boa noite e lhe comunica que acaba de conquistar o Prêmio Molière. 

 

Prossigo, margeando a Praça Deodoro, depois de cruzar o John Kennedy Center na esquina do Rua do Sol, e na confluência da Rua da Paz me demoro um pouco para observar o professor Fernando Moreira fazendo a leitura de Sófocles para um grupo de estudantes, sob o caramanchão do pátio de sua morada inconfundível. 

 

A rua desemboca na Praça da Alegria. No casarão da esquina as luzes estão acesas. É o doutor Antenor Bogéa, jurista, ex-constituinte, professor de Direito, lendo em sua vasta biblioteca. 

 

Para meu desencanto, ali mesmo, onde a Santaninha se confunde com a praça, toda a fantasia se desfaz. 

 

Olho para o casarão, depois para o trecho percorrido, e em tudo há apenas silêncio e desolação. Cadê as pessoas que ontem estavam aqui? Como no poema de Manuel Bandeira, estão todas dormindo, dormindo profundamente... 

 

Começa a chover. Eu me deixo molhar completamente. Bebo a chuva, chuto uma lata que me atrapalha o caminho e mergulho na noite insondável, nesta Rua dos Ausentes, em meio à pandemia.

 

Comentários

  1. Belas recordações Pipoca, ótima narrativa.
    Lembrei de nossa radiola pés de palito, com belo e brilhante verniz, porta para os discos e uma tampa com o toca-disco. Ainda hoje gosto de escutar meus antigos a até novos LP's, que estão sendo lançados recentemente. Até minha filha, que esta morando em terras australianas, levou daqui alguns discos e uma vitrola portátil.

    ResponderExcluir
  2. Excelente narrativa meu caro, transportou-me por instantes de São Paulo para São Luís. Parabéns

    ResponderExcluir
  3. Que coisa linda de se ler!! Valeu Pipoca....

    André da Gracy

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

Guimarães Rosa nas alturas

Quanto vale um poeta?

A vantagem do silêncio sobre a adesão do MA à Independência

Gonçalves Dias e a Independência do Brasil

Os amigos maranhenses de Guimarães Rosa

A poesia visceral de Jorge Abreu

Um governador no sertão

Mondego: anjo e demônio da Praia Grande