Caminhando





      Brasília,nesta época do ano, é um convite à transgressão das normas de isolamento. 

       Como permanecer em casa com essas manhãs de sol que, repentinamente, substituem os céus nublados de agora há pouco? Como recusar, com indiferença, o ofertório desses ares úmidos, quase neblina, tão raros em outras épocas, e essa vegetação exuberante, e esse céu azul sem nuvens? 

 

         Com suas avenidas largas, de pouco movimento, ciclovias, pistas para caminhadas, parques e jardins verdejantes e floridos por toda parte, meia dúzia de rios, riachos e ribeirões em seu entorno e, no centro de tudo, resplandescente, o lago Paranoá, a cidade nos tenta, todos os dias, a sair de casa, com a garantia de que não participaremos de aglomerações nem contribuiremos para a disseminação do vírus. 

 

         Basta pôr a máscara no rosto e sair por aí, dando bom dia às pessoas (à distância), às árvores, às flores e aos passarinhos...

 

         Nessas horas, dá até pra imaginar que a vida é simples, que ela é como um rio que flui incessantemente, ou que a realidade não passa de uma ideia, uma representação em nossas mentes, como imaginaram os filósofos. Mas é enganoso supor que o flagelo da Covid deixaria de existir se deixássemos de pensar nele... 

 

         Você sai de casa a pé, de carro ou de bicicleta, para aspirar esse ar puro que sopra entre as árvores e desliza sobre gramados infinitos; sai para apreciar as obras de arte que Niemeyer espalhou pela cidade, em forma de palácios, museus, teatros e monumentos a céu aberto, e em todo o percurso não deixará de pensar na tragédia que vivemos. A beleza ilumina; não cega.

 

         São quase 200 mil mortos em menos de um ano! Somente ontem, foram 600. A maioria poderia ter sido evitada, sabemos desde o início da pandemia, mas a incompetência dos governos e a irresponsabilidade da maioria da população alimentaram a escalada de mortes.

 

A verdade é que nós, brasileiros, somos vítimas da ação de um vírus ainda mais letal do que o do coronavírus. O vírus da ignorância e do obscurantismo, que nega a gravidade da pandemia, põe em dúvida a eficácia da vacina, faz pouco caso da ciência e dissemina notícias falsas, as fake news.

 

         A vacina está chegando, que bom, mas até que seja ministrada a todos os brasileiros milhares de pessoas terão morrido nos leitos dos hospitais, vencidos pelas infecções e pela incúria. Sem contar que os negacionistas continuarão contaminando os incautos e indefesos, mesmo após o fracasso retumbante do guru de todos eles, felizmente apeado da presidência da mais poderosa nação do mundo. 

 

       Caminho entre mangueiras, ipês, jacas, maçarandubas, pinheiros e oitis. Um belo gavião, um carcará com seu solidéu negro na cabeça, faz um vôo rasante antes de pousar num galho da mangueira à minha frente, e me concentro no espetáculo da natureza, na imensidão deste planalto, no milagre da vida. E me dou conta de que é véspera de Natal, que um Menino nasceu para anunciar uma nova era para a humanidade...

 

Aspiro os ares úmidos desta manhã de sol e clorofila, e penso em você, meu solidário leitor, que me acompanhou até aqui, seguindo o curso destas linhas tortas e desta caminhada... Obrigado! E Feliz Natal!


(Foto: Agência Brasília)

         

         

         


Comentários

  1. Ótima crônica Antonio Carlos.
    Costumo chamar o "governo do desgoverno", tanto para os governantes, quanto para os incautos com a "irresponsabilidade da maioria da população", muito bem colocada.
    Vamos procurar a luz e vivenciar as belezas da cidade sem perder o foco.
    Grande abraço!

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  2. Excelente AC, texto lúcido e poético. Parabéns

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  3. Que experiência encantada e encantadora caminhar em tua companhia pelas tardes coloridas de Brasília. Respirar a magia incomparável de estar vivo, de partilhar com as árvores, os pássaros, o vento, as nuvens, o milagre da vida. Tens o dom de trazer para dentro de nós o que consegues extrair e captar deste mundo tão lindo, deste país tão belo, infelizmente hoje sob o império dia canalhas, sob a égide do ódio, da estupidez, da ignorância e do descalabro. Ler teu texto é como respirar uma esperança.

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  4. Parabéns. Lírica e cheia de coisas boas.

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