Quadrinhos, livros e vacas

Admiro os amigos que dizem ter lido a Divina Comédia aos oito, nove anos de idade, conheceram o idealismo transcendental de Kant aos dez e, aos onze, já sabiam de cor trechos do Fausto, de Goethe.
Antes dos dez anos, o que eu lia mesmo, e muito, eram histórias em quadrinhos e livros de bolso.
Lembro de estar, aos sete anos, na fila do Cine Natal, para assistir a Ben-Hur, de William Wyler, com uma pilha de revistas do Fantasma, Mickey, Tarzan e Super-Homem debaixo do braço para o ritual de troca de exemplares já lidos, na calçada larga onde leitores e cinéfilos se encontravam toda vesperal de domingo.
(Por que acabaram com o saudável escambo de revistas e figurinhas de álbuns nas portas dos cinemas? Ou, se melhor pergunto: por que acabaram com os cinemas daquele tempo?).
Foram os quadrinhos, juntamente com o rádio – único meio de comunicação de massa que conheci na infância -  a minha primeira janela para o mundo.
Com as histórias em quadrinhos, viajei países, visitei ilhas, desbravei continentes. Fui à Patagônia, às selvas africanas, ao Polo Norte e aos mares do Sul. Conheci o Oeste americano, descobri a pedra filosofal e as minas do rei Salomão.
Os livros de bolso vieram em seguida, quando fui passar uma temporada na casa de um tio.
Meu primo, o filho desse tio, era um pouco mais velho do que eu, e todos os dias me convidava para acompanhá-lo numa tarefa que o pai lhe determinara: levar para o pastoreio, do outro lado do rio, duas vacas de leite criadas num pequeno curral.
O trabalho desse meu primo era nenhum, porque ele levava duas peias e dois chocalhos para colocar nas vacas, impedindo-as de se afastar muito ou se perder nos pastos naturais. Numa pequena mochila carregava meia dúzia de livros de bolso, principalmente da série FBI e ZZ7.
Ele então procurava a sombra de uma árvore frondosa, sacava os livros da mochila, entregava-me um deles e dizia: leia, mas fique atento ao chocalho das vacas.
Acomodávamo-nos entre as raízes expostas de uma sumaumeira e mergulhávamos naquelas  eletrizantes histórias de amor e  espionagem até o por do sol, hora de levar as vacas de volta ao curral. 
Com o passar do tempo, descobri outros leitores e outros livros de bolso interessantes. Mas nenhum que me marcasse tanto quanto Memórias secretas de Gisele, a espiã nua que abalou Paris.
Eram quatro livrinhos que contavam a história real, porque baseada em memórias, da espiã Giselle Montfort, integrante da Resistência francesa durante a ocupação da França pelos nazistas, na Segunda Guerra Mundial.
Giselle era linda, sensual e irresistível, estampada nas capas em ilustrações de Benício, um artista desconhecido que depois ficaria famoso. Ela usava o corpo para obter informações dos oficiais nazistas e repassá-las à Resistência. No final, é descoberta e levada ao pelotão de fuzilamento.
Além de ser uma história sedutora, percebi, nos meus tenros dez anos, que era muito bem escrita.
Anos depois descobri que aquelas aventuras nada tinham de real. Giselle nunca existiu,  não passava de uma invenção de um jornalista muito popular à época, David Nassser.
A história fora originalmente publicada em 1948, em capítulos, no Diário da Noite, dos Diários Associados, ilustrada com fotos de Jean Manzon, o célebre fotógrafo francês que se estabelecera definitivamente no Rio de Janeiro. Somente em 1964, Giselle foi publicada em livro, quatro volumes, com texto final de um grande poeta brasileiro, o carioca Augusto Frederico Schmidt.
A impressão do leitor juvenil sobre a qualidade literária dos livrinhos se justificava plenamente.
As aventuras de Giselle fizeram tanto sucesso, que deram origem à série ZZ7, sobre as aventuras de uma filha da espiã que, após a morte da mãe, foi levada para os Estados Unidos e lá tornou espiã da CIA.
Li dezenas de livros Brigitte Montford, a filha de Giselle, assinados por um tal de Lou Carrigan, que era ninguém menos do que o jornalista espanhol Antonio Vera Ramírez.
As histórias em quadrinhos e os livros de bolso acabaram por me viciar em leitura. Daí para os clássicos nacionais e estrangeiros foi um pulo.
Foi por causa delas que descobri Robinson Crusoé, Sherlock Holmes, Emília, o homem que calculava, o jagunço Riobaldo, Ana Karenina,  o pescador Santiago e uma mocinha chamada Capitu, aquela de olhos de cigana oblíqua e dissimulada.
Sem os livros de bolso e as histórias em quadrinhos, eu talvez não tivessse conhecido com tanta naturalidade, como se já as conhecesse, figuras como madame Bovary, a cachorra Baleia, os irmãos Karamazov, o mulato Raimundo e a interessante Alice, com seu país de tantas maravilhas.
Se tivesse, como meus amigos precoces, iniciado minhas leituras pela Divina Comédia ou pelo transcendentalismo de Kant,  eu talvez nem fosse o leitor compulsivo em que me tornei.
Teria desistido diante de tarefa tão árida e aborrecida para um menino de dez anos, que lia, sem sobressaltos, com um olho no livro e o outro nas vacas...





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