O Duque de Giz

 Reunião no  terraço do Castelo de Giz, à beira do Rio Corda. O Duque está na margem direita da foto, sentado e de boina
         Chamava-se José Nogueira Arruda. Zezé Arruda, para os íntimos. 
         Um dia, de passagem pela cidade, um caixeiro viajante lhe disse que a sua casa, por ser ampla e ter a fachada pintada de branco, assemelhava-se a um castelo de giz.
Ele gostou da imagem, e o caixeiro, para agradá-lo duplamente, levou-lhe, na viagem seguinte, uma placa de alumínio com a inscrição que identificaria até hoje, na fachada, a morada branca mais célebre dos meus tempos de menino em Barra do Corda: Castelo de Giz.
O Duque e irmãs, em frente ao Castelo
            Se a casa, localizada em frente a uma pracinha arborizada e de fundos para o rio, era um castelo, o dono certamente era um duque, concluiu Zezé Arruda.
Concedeu-se, assim, o título de Duque de Giz. E  exerceu até  fim da vida suas funções, digamos, nobiliárquicas, em meio a súditos e plebeus, seus muitos amigos, que participavam, convictos e compenetrados, daquela divertida encenação.
Era um homem feliz. Pelo menos, não me lembro de tê-lo visto triste ou aborrecido alguma vez. Para ele, a vida era uma festa.
Dizia que as pessoas poderiam ser o que bem entendessem, inclusive ricas, bastando para isso a imaginação. E dava o próprio exemplo. Não sendo rico nem nobre, embora abastado para os padrões locais, fazia da sua e da vida dos amigos uma eterna celebração.
O castelo, uma casa ampla de duas águas, cobertura de telha vã, muro com gradis de ferro batido em forma de lanças, piso de mosaico decorado, foi local de memoráveis festas e reuniões que se transformavam em tertúlias etílico-literárias, nas quais o duque declamava poemas e fazia discursos de consagração dos vultos do passado e das belezas naturais daquele idílico recanto sertanejo.
E, como tinha boas acomodações, além de um anfitrião espirituoso e acolhedor, a casa era também o local de hospedagem dos políticos e outras personalidades importantes que visitavam o município.
A duquesa Guaracy, elegante e simpática, comungava do espírito do faz-de-conta, e ria dos exageros do marido, sempre atenta aos passos dos dois filhos, o príncipe Denys e a princesa Ana Luiza.
Não como traço da nobreza fake, mas por puro capricho, o duque trajava-se invariavelmente de branco: camisa, bermudas, sandálias e boné brancos. Completavam o visual a cabeleira domada por brilhantina e um óculos escuros ray-ban.
Seus amigos, que reunia no terraço cimentado da casa em frente ao porto para farras homéricas, eram todos príncipes, cujos títulos eram avocados solenemente. “Príncipe Carlos Augusto Franco, senhor das Duas Ilhas e  terras adjacentes, apresente-se!”. O indicado respondia “presente!”, o que era uma senha para a virada dos copos.
Como um deus sertanejo, dava nome a todas as coisas. Cisne Branco era um pequeno barco  equipado com motor de popa Johnson de 20 HP, no qual navegava aos domingos com a família, rio acima, rio abaixo, antes de ancorar no porto do Guajajara Iate Clube, em cujo palco discursava, às vezes em hora inconveniente, como na abertura do Carnaval, durante o reveillon, quando todos só queriam dançar. Era o mais animado folião dos nossos carnavais.
Mandubé era o jipe Wyllis sem capota que usava para fazer cobrança dos alugueis de casas e quartinhos que possuía, sua principal fonte de renda. Ao fusquinha branco, motor 1300, presente para a duquesa, deu o estranho nome de Sundababe. Até a churrasqueira em torno da qual reunia os amigos, ganhara nome: Infeliz Perpetinha, alusão ao sofrimento da jovem estudante sequestrada por índios guajajaras durante o massacre do Alto Alegre.
Eu frequentava o castelo porque era amigo do príncipe, que tinha uma escola de datilografia, onde instalamos, ao lado de uma mesa de pingue-pongue, a redação de “O Pássaro”, jornal mimeografado que publicávamos aos sábados. O jornalzinho era um sucesso, mas nem toda semana estávamos dispostos a produzi-lo, pelo que éramos repreendidos severamente pelo duque. “Jornal não pode deixar de circular; larguem de preguiça e mãos à obra”, dizia. E o jornal circulava.
Redação de "O Pássaro": o príncipe (sem camisa) e eu
Para nos impressionar, contava ter sido repórter de “O Imparcial” nos anos 50. Foi ele quem primeiro me falou da passagem por São Luís, em 1955, do deposto presidente argentino Juan Domingo Perón, em fuga para o exílio, a quem teria entrevistado. Sempre duvidei dessa história, até que, no mês passado, pesquisando sobre a visita de Perón na biblioteca pública, deparei com uma foto do líder argentino tendo a seu lado quem me pareceu ser o duque.
Essa a razão do telefonema que dei em seguida ao príncipe Denys, o único da família vivo, em Barra do Corda.
Foi um reencontro virtual de emoções.
O duque, ele me lembrou, morreu há 31 anos, a duquesa não suportou a vida sem a sua companhia, mas esperou que a princesa Ana Luiza se fosse antes dela para também partir. Denys vive no castelo com a família, mas sem os ritos do passado. Pedi que identificasse o pai na foto, e ele não teve dúvida: ali estava o duque, ao lado de Perón.
Lembrei do Duque de Giz porque neste domingo, 3 de maio,  é o aniversário de fundação de Barra do Corda, a terra do menino que fui. E é impossível pensar nela sem lembrar a figura de seu mais ardoroso cantor e amante.
Há 185 anos, um desbravador aventureiro resolveu que ali, na confluência de dois rios selvagens, no coração do sertão, seria erguida mais do que uma cidade, uma réplica do paraíso.
E que nele haveria um poeta, o Duque de Giz, que me faria acreditar, naqueles tempos felizes, que a vida era uma festa e uma eterna brincadeira.

Fachada do Castelo de Giz


Comentários

  1. Já estive neste castelo recepcionada, não me lembro por quem.Fui com a família do meu tio Edmar Fialho Souza . Ressalto como lembrança histórica, que o meu bisavô materno, Fotunato Fialho foi o primeiro prefeito de Barra do Corda, segundo o livro da árvore genealógica da Família Fialho , homenageado com uma rua com seu nome.

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