História de uma infâmia



            Eis um livro que todos os brasileiros deveriam ler. Entre outras razões, porque ele nos coloca diante do espelho, perante nossa imagem verdadeira, aquela que muitas vezes evitamos encarar.

Em linguagem simples, antiacadêmica e sedutora, ele nos conta, com a objetividade e a clareza ausentes na maioria dos livros  disponíveis sobre o assunto, a história da escravidão negra no Brasil.

         Primeiro de uma trilogia que o autor, o jornalista Laurentino Gomes,  produziu após seis anos de pesquisas e visitas a uma dezena de países em três continentes, “Escravidão” (Globo Livros, R$ 49,90, 504 págs.), o livro a que aludimos, é a história muito bem contada de uma infâmia que marcou a vida brasileira durante mais de 300 anos.

         Como adverte o próprio Laurentino, a escravidão no Brasil foi “uma tragédia humanitária de proporções gigantescas”.

Arrancados à força de suas casas, de suas famílias, de seus países, transportados como animais em travessias tormentosas do Atlântico, os africanos construíram o Brasil com seu trabalho árduo, com muita dor, humilhação e sofrimento. “O horror! O horror”, invoca o autor, em epígrafe do primeiro capítulo, a exclamação do personagem de Joseph Conrad no romance “Coração das trevas”.

         Esse primeiro livro da trilogia envolve um período de 250 anos:  do primeiro leilão de escravos realizado em Portugal, em 1444, à morte de Zumbi dos Palmares, em 20 de novembro de 1695.

Nesses dois séculos e meio, mais de 5 milhões de cativos africanos foram trazidos para o Brasil em navios negreiros. Mas a obra evidencia que a escravidão é tão antiga quanto a humanidade.

         É desconcertante saber que o escravismo era não apenas legalmente permitido e patrocinado pelos governos de quase todos os povos, mas moralmente aprovado por grandes pensadores e intelectuais ao longo da história.

Já na Grécia antiga, Aristóteles dizia que “a humanidade se divide em duas: os senhores e os escravos; aqueles que têm o direito de mando, e os que nasceram para obedecer”.

David Hume, um pensador iluminista, advogava que o negro seria naturalmente inferior ao branco. Hegel escreveu que “a falta de controle distingue o caráter dos negros”. O Papa Nicolau V autorizou os portugueses a escravizar infiéis. No Brasil, o padre Antonio Vieira afirmou que os negros deveriam ser gratos à escravidão porque ela os retirara da barbárie em que viviam na África e os trouxera para a “libertação” cristã do cativeiro.

Laurentino Gomes, o autor de "Escravidão"
Um dos méritos do livro de Laurentino Gomes é contar o passado da escravidão com um olho no presente, para demonstrar que, mais de 130 anos depois da Abolição, ainda não compreendemos a dimensão desse passado nem o modo como ele ainda se reflete em nossas vidas.

Porque ele se reflete, sim, na falta de oportunidades de ascensão social que o negro enfrenta no seu cotidiano e nas manifestações de racismo verificadas nas estatísticas sobre violência policial e nas demonstrações de ódio que irrompem nas ruas e nos estádios de futebol.

“Escravidão” é, sobretudo, um livro muito bem escrito, o que torna a sua leitura uma experiência rica e prazerosa, embora sobre tema tão doloroso.

Ele nos ajuda a entender que somos um país composto majoritariamente por afrodescendentes e como tal devemos nos reconhecer diante do espelho, envergonhados pelo que fizemos contra os nossos irmãos africanos, nossos antepassados, mas orgulhosos da herança – material,  espiritual e cultural -  que eles nos legaram.

(Publicado na edição deste sábado, 30.11.2019, do jornal O ESTADO DO MARANHÃO).       


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