Fim da Tempestade

Ontem, bem cedo, ao acessar a Internet, deparei com um vídeo que me transportou, como a madeleine de Proust, ao meu passado mais distante, o tempo perdido na névoa das lembranças remotas. 
No vídeo, o maestro Francisco Lopes Galvão executa ao saxofone uma música que inúmeras vezes ouvi na minha adolescência, como estudante do ginásio Pio XI, dos frades capuchinhos italianos, em Barra do Corda. Era “O fim da tempestade”. 
Impossível ouvir, emocionado, aquela música, um bolero, de melodia singela e triste, sem lembrar a figura terna, doce e inquieta do seu autor, o professor Galeno Edgar Brandes. 
Com esse nome sonoro de médico grego, o professor Galeno foi, para mim e muitas gerações de estudantes, o protótipo de intelectual correto e do homem bom e de ação. Mestre a amigo.
Além de professor de matemática, era poeta, desenhista, escritor, jogador de futebol, compositor e músico. Também ensinava física, química, biologia e até educação física, quando o professor titular faltava. Era, ainda, um grande orador. 
Tocava piano no colégio; harmônio na igreja; violão nas rodas de amigos e alunos e, às vezes quebrava o silêncio das noites mal iluminadas da nossa cidadezinha arrancando notas sentidas de um velho piston dourado. 
Foi vereador e prefeito da cidade. Anos mais tarde foi eleito deputado e depois nomeado diretor da Assembléia do Maranhão. Mas dizia que o seu grande sonho era escrever a história de Barra do Corda, o que efetivamente fez, pouco antes de morrer, em 1994.
Foi por isso que depois de ouvir aquela música pela terceira vez, corri à estante à procura do livro que ele deixou pronto, mas que só foi impresso após a sua morte, por iniciativa de sua esposa, dona Alda Brandes, pessoa tão querida e respeitada quanto ele na comunidade.
Além do livro impresso – Barra do Corda na história do Maranhão, Edições Sioge – localizei a “boneca” da obra, que ele havia preparado, quase artesanalmente, para levar à gráfica, e me presenteara. Ali está boa parte desse trabalho magnífico datilografado em formato meia lauda e precariamente encadernada. 
Percorri aquelas páginas com o pensamento na Barra do Corda do finalzinho dos anos 60, uma pequena cidade do sertão maranhense, circundada por dois rios selvagens, uma natureza exuberante, praticamente isolada do mundo, não fossem o rádio e o telégrafo, pois viajar pelas estradas de terra era uma aventura e uma temeridade. 
E os índios, muitos índios. Guajajaras e kanelas, com os quais convivíamos serenamente, apesar das lembranças da tragédia de Alto Alegre e da infeliz Perpetinha. 
Reli a dedicatória que dona Alda faz na abertura do livro impresso, e lá está: “Ao jornalista Antonio Carlos Lima, fundador do jornal “O Pássaro”, que voou discretamente do ninho e das oficinais do Colégio N. Sra. De Fátima, em Barra do Corda, alcançando altitudes notáveis como verdadeira águia da comunicação”.
Fechei o livro e retornei à Internet. Abri o WattsApp e, ali, numa nota pungente, meu amigo Jorge Abreu me comunicava que, justamente ontem, Dona Alda Brandes havia falecido. 
Foi um choque profundo.
Já em transe por causa das lembranças da figura marcante do professor Galeno e da leitura dos originais da obra de toda a sua vida, não pude conter a emoção e a tristeza com a notícia da morte de dona Alda, sua esposa e companheira. 
Um pouco da minha juventude foi-se embora com eles dois.
E não me conformei sequer com a mensagem da música que o professor Galeno fez em homenagem à companheira, em que fala em fim da tempestade, e que ouvi repetidamente nessa manhã de terça-feira.
Para mim,  uma tempestade estava começando...

Para mim, a tempestade estava apenas começando...

Comentários

  1. Que bela crônica. Que bela homenagem a esse casal que fez a diferença na vida de tantos jovens como vc Antonio Carlos Lima. Agora este texto sim, nos leva ao transe total. Emocionante

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  2. Meu caro, são esses depoimentos tão expressivos que nos fazem mais humanos a cada dia. Belo texto! Uma prova de que momentos tristes podem render excelentes obras de arte.

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