A Petagógica e as fake news

“PRIMEIRO editor, digno do nome, que houve entre nós”, segundo Machado de Assis, Francisco de Paula Brito (1809-1861) foi também autor de uma iniciativa original, no início dos anos 40 do século XIX, de combate a notícias falsas, as fake news, praga que parece nova em nossos dias, mas é tão antiga quanto a humanidade. 

Nos fundos da livraria de sua propriedade, no bairro do Catete, no Rio de Janeiro, Paula Brito fundou o que depois denominaria de Sociedade Petalógica, um clube lítero-recreativo e humorístico que reunia intelectuais, artistas, jornalistas e pessoas simples do povo. O jovem aprendiz de tipógrafo Machadinho era um dos frequentadores do clube.

"Peta” significa mentira. O principal objetivo da sociedade, que tinha suas atas publicadas na Marmota Fluminense, outra invenção de Paula Brito, era desmoralizar os mentirosos – aqueles que, valendo-se de certa credibilidade - políticos, comerciantes e redatores de pasquins - , disseminavam mentiras, e, com elas, “faziam e desfaziam ministérios, arranjavam e desarranjavam negócios, protegiam e desprotegiam o gênero humano”. 

Durante as reuniões da Petalógica, para as quais eram convidados suspeitos da autoria de fake news, alguém contava um fato que dizia ter presenciado ou dele ouvira falar, ao que um dos presentes, em combinação, acrescentava uma mentira, confirmada por outros presentes.

“Em poucas horas, corria a mentira com mais força do que o incêndio lavra em cavacos de pinho”, divertiam-se os membros da Petalógica, enquanto os propagadores das notícias fabricadas caíam em absoluto descrédito.

A figura marcante de Paula Brito na cena cultural brasileira do século XIX e o significado dessa curiosa e divertida sociedade que ele inventou constituem objeto de análise de um livro recentemente publicado pela Editora UFMG: “Corpo sem cabeça”, de Bruno Guimarães Martins, professor do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal de Minas Gerais.

Trata-se de texto acadêmico de alta qualidade, adaptação da tese de doutorado de Martins na PUC-Rio, no qual observa como a chegada do impresso no Brasil impactou uma sociedade de cultura marcadamente oral até o início do século XIX, e de que modo Paula Brito, mulato letrado numa sociedade escravocrata, influiu nesse processo. 

Entre outros feitos, PB publicou os primeiros escritos de Machado de Assis, Gonçalves Dias, Joaquim Manuel de Macedo e Teixeira de Sousa. 

A Sociedade Petalógica, que sobreviveu à morte do editor, em 1861, insurgia-se não apenas contra os mentirosos, mas também, pela linguagem bem humorada e popular que adotava, contra a comunicação empolada dos bacharéis da época.

Em texto de 1865, Machado de Assis lembra que às reuniões da Petalógica “ia toda a gente, os políticos, os poetas, os dramaturgos, os artistas, os viajantes os simples amadores, amigos e curiosos”. 

Para os frequentadores daquela associação, “verdade e mentira, que essencialmente se repelem e parecem criadas para mutuamente destruírem-se, às vezes marcham unidas como devotadas amigas”. 
“E como distingui-las?”, pergunta o redator da “Marmota”. Ele mesmo responde: “Não sei”. 

Em “Corpo sem cabeça”, Bruno Martins reconstitui, em prosa cativante, um tempo do Brasil em que, sem a praga da Internet e do WattsApp, para combater as fake news bastava rir dos mentirosos. 

Que tempos!

(Publicado n "O Estado do Maranhão", 3.11.2018).

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