A polêmica dos cegos (O duelo entre Machado de Assis e o maranhense Joaquim Serra)
“Qual dos dois
cegos mais sente/ O penoso estado seu:/ O que cegou por desgraça,/ O que cego
que já nasceu?”
Em
torno dessa intrigante questão, formulada pelo jornal fluminense A Marmota aos seus leitores, o então aprendiz de tipógrafo e aspirante a
poeta Joaquim Maria Machado de Assis
travou, aos 19 anos, sua primeira
discussão pública, ao enfrentar outro Joaquim Maria, o maranhense Joaquim Maria
Serra Sobrinho, de 20 anos - mais tarde um de seus mais diletos amigos- , no
episódio que ficou conhecido como “a polêmica dos cegos”.
A polêmica, que
durou um mês, de 26 de fevereiro a 26 de marco de 1858 – há 161 anos, portanto - exibiu um Machado de
Assis diferente daquele apresentado por seus biógrafos: o do intelectual que
cultivara, durante toda a vida, o “tédio à controvérsia”.
Afinal, à exceção da crítica corrosiva feita ao
escritor português Eça de Queiroz, a propósito
do realismo de “O crime do padre Amaro”, o maior escritor brasileiro sempre
evitara polêmicas, o que não o poupou da fúria dos adversários, como bem descreve
Josué Montello em “Os inimigos de
Machado de Assis” (Nova Fronteira, 1998).
Joaquim
Serra, à época estudante da Escola Militar, no Rio, foi o primeiro a responder
ao desafio do jornal, para o qual Machado trabalhava e colaborava. Os dois não
se conheciam, e só viriam a se conhecer anos depois.
O maranhense
defendeu a tese de que a cegueira por acidente é mais dolorosa do que a cegueira
nata. “A cegueira, isto é, a morte da vista, é a aniquilação da maior parte da
vida. O cego de nascença começa sem essa aniquilação“, argumentou. Para ele,
“não ver é uma privação; ter visto e não ver é um castigo”.
Na edição
seguinte da Marmota, alguns leitores manifestaram-se favoravelmente ao jovem maranhense. Machadinho resolveu, então, entrar na liça. Apresentando-se apenas como As, começou atacando Serra, que, segundo afirma, nada
dissera em seu artigo. “Nem mesmo a razão
sobre que o mesmo Sr. funda a sua opinião”. E contestou, com veemência, todos
os argumentos do articulista. Em inteligente digressão filosófica, sustentou,
citando Descartes e Locke, que nascer sem a visão é pior do que perdê-la. O
cego de nascença não tem sequer a ideia exata dos objetos, afirmou.
Autor de “A
juventude de Machado de Assis” (Civilização Brasileira, 1971), o francês
Jean-Michel Massa observou que, com esse embate, aos 19 anos, Machado já
manipulava, com mestria, ideias e
conceitos. “Uma cultura tão vasta num jovem dessa idade, já era espantosa”, ele
diz. O biógrafo também destaca a inteligência do oponente, dono de “uma cultura
muito volumosa”, mas não tem dúvida de que Machado triunfou.
Após essa discussão, Joaquim
Serra retornou ao Maranhão, para dedicar-se à poesia, ao jornalismo e ao
magistério. A discussão era assunto do passado. Encontrava-se na Paraíba, como secretário de governo, quando, em 1864, foi apresentado à Corte por Machado
de Assis, em artigo publicado no Diário
do Rio de Janeiro.
Em 1868, Serra mudou-se
definitivamente para o Rio, e, como jornalista, transformou-se num dos maiores ativistas da causa
da Abolição, ao lado de Joaquim Nabuco, André Rebouças, José do Patrocínio e
Luís Gama. Tornou-se, então, amigo e confidente
de Machado de Assis. Muitas cartas que os dois trocaram estão publicadas no
tomo II da “Correspondência de Machado de Assis”, organizado por Sergio Paulo
Rouanet (ABL, 2009)
Os dois, porém, jamais
se referiram, em suas obras e na correspondência, à polêmica sobre os cegos, o
que gerou dúvida, levantada por Jean-Michel Massa, mas desfeita por outros
biógrafos (José Galante de Sousa, Raimundo Magalhães Jr. etc), sobre a
identidade do adversário de Machado.
Quando Serra
morreu, pouco antes da assinatura da Lei Áurea, Machado, o já consagrado autor
de “Dom Casmurro”, publicou, no Diário do
Rio de Janeiro de 5 de novembro de 1888, uma de suas mais comovidas
crônicas. Nela se refere a Serra como “o amado amigo”, “o homem que havia
ajudado a soletrar a liberdade no Brasil”. Em 1897, ao fundar a Academia Brasileira
de Letras, escolheu-o como patrono da cadeira número 21.
Nos
três artigos que, ainda adolescente, escreveu para a Marmota, para contestar o futuro amigo, já estavam presentes alguns
traços da inteligência e do estilo que fariam de Machado de Assis o maior
escritor brasileiro de todos os tempos.
O que comprova o
acerto da observação de Joaquim Nabuco, segundo a qual “ninguém escreve nunca senão
com o seu periodo, a sua medida, Renan diria a sua eurritmia, dos 21 anos” (Minha
Formação (Edições do Senado).
Há
161 anos, a propósito de uma discussão sobre a cegueira - tema que ainda hoje divide opiniões - estava nascendo, e ninguém percebeu, “um gênio brasileiro”, como o qualificou o
jornalista Daniel Pizza no título da mais recente biografia do Bruxo do Cosme
Velho (Editora Imprensa Oficial, 2005). Como se vê, um gênio zangado.
Eram os primeiros passos de um
escritor que, um século e meio depois, seria incluído, por iniciativa de
críticos e acadêmicos norte-americanos e ingleses - Harold Bloom, Susan Sontag, John Updike e Michael Wood - , no rigoroso cânone
da literatura ocidental.
(Publicado na edição de hoje, 23.02.2019, no jornal O ESTADO DO MARANHÃO)
(Publicado na edição de hoje, 23.02.2019, no jornal O ESTADO DO MARANHÃO)
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