Guimarães Rosa nas alturas
Há 55 anos, no dia 19 de novembro de 1967, um infarto fulminante tirou a vida de João Guimarães Rosa, já então reconhecido como um dos maiores escritores brasileiros de todos os tempos e um dos mais importantes da literatura em língua portuguesa. Aos 59 anos, ele estava sozinho em seu apartamento, no Rio de Janeiro. A notícia de sua morte causou comoção em todo o Brasil, sobretudo nos meios acadêmicos e intelectuais, que, três dias antes, haviam aplaudido o seu ingresso na Academia Brasileira de Letras. Desde então, a fama de Guimarães Rosa só cresceu. E não apenas como escritor.
Hoje,
quem for ao município de Santa Isabel do Rio Negro, no norte do estado do
Amazonas, e se aproximar da fronteira do Brasil com a Venezuela, poderá
contemplar o ponto culminante do território brasileiro, o Pico da Neblina, que
se ergue a 2.993 metros acima do nível do mar.
Se, de determinado ângulo, observar o conjunto de corcovas alinhadas ao
lado da montanha, verá, igualmente soberbo e majestoso, o Pico Guimarães Rosa,
com seus 2.150 metros de altitude.
Caso o observador esteja no sul do
País, na área da Tríplice Fronteira, em Foz do Iguaçu, como me encontro agora,
bastará olhar a imensa catedral de concreto da barragem da usina hidrelétrica
de Itaipu para evocar a figura do autor de Grande sertão: veredas. Sim,
porque Itaipu, para quem não sabe, é, de certo modo, uma obra de Guimarães
Rosa.
Tanto a denominação da cúpula da
montanha do Parque Nacional da Neblina quanto a associação da imagem de
Guimarães Rosa à maior hidrelétrica do mundo devem-se ao papel por ele
desempenhado em outra atividade em que também se destacou ao longo da vida,
paralelamente ao ofício de escritor: a
diplomacia.
Como servidor de carreira do Ministério
de Relações Exteriores, onde foi admitido por concurso público em 1934, aos 26
anos, e, especialmente, como chefe da Divisão de Fronteiras do Itamaraty, cargo
que exerceu por onze anos, até a morte, Guimarães Rosa encaminhou soluções para
explosivos conflitos sobre marcos territoriais entre o Brasil, a Venezuela e o
Paraguai.
Foi com base em notas produzidas pelo
diplomata e escritor que, em 1966, os chanceleres do Brasil, Juracy Magalhães,
e do Paraguai, Raul Sapeña Pastor, assinaram a Ata de Iguaçu, um dos principais
marcos da integração entre os dois países. A Ata autorizou, pela primeira vez,
estudos técnicos para o aproveitamento conjunto das águas do Rio Paraná na
geração de energia e abriu caminho para o Tratado de Itaipu, firmado pelos dois
países em 1973, documento que resultaria na construção da hidrelétrica.
O
local da fronteira questionado pelo Paraguai foi sepultado pelas águas do lago
formado pela represa da Usina, encerrando, de uma vez por todas, uma contenda
iniciada dois séculos antes, quando Portugal e Espanha firmaram o tratado
definidor dos contornos territoriais das ex-colônias, deixando dúvidas quanto à
posse das terras na região do Salto de Sete Quedas.
Em suas notas, que definiram a posição brasileira no conflito, o diplomata sugeriu que o Brasil promovesse, em conjunto com o Paraguai, os planos necessários à utilização prática do potencial energético decorrente do Salto das Sete Quedas e que o rio Paraná, “ao invés de oferecer aos dois países razões de litígio ou desavenças”, constituísse motivo de união. O Tratado de Itaipu, que teve a sua semente plantada naquelas anotações, é até hoje considerado um exemplo para o mundo de solução pacífica de conflitos entre nações.
Pouco
se diz e escreve a respeito, mas a primeira profissão de Guimarães Rosa foi a
de médico, formado pela Universidade de Minas Gerais. Como médico, ingressou,
em 1932, como voluntário, na Polícia Militar mineira, comissionado no posto de
capitão, sendo depois efetivado, por concurso, no batalhão de Barbacena. Deixou
a caserna para ingressar na diplomacia. No início da carreira diplomática, no
cargo de cônsul-adjunto do Brasil em Hamburgo, na Alemanha, casou-se com Aracy
Moebius de Carvalho, que ali chefiava a seção de passaportes do consulado
brasileiro.
Com
a esposa, teria facilitado a concessão de centenas de vistos para famílias de
judeus escaparem da morte nos campos de concentração de Hitler, desafiando o
antissemitismo do governo de Getúlio Vargas. Por essa razão, ele e a mulher ficaram
detidos na Alemanha e foram investigados pelas polícias do Brasil e da
Alemanha.
Na famosa entrevista que
concedeu em Gênova, na Itália, em 1965, ao crítico alemão Günter Lorenz, reproduzida
no livro Guimarães Rosa: Ficção completa (1994), da Editora Aguilar,
o escritor e diplomata diz que, como médico, conheceu “o valor místico do
sofrimento; como rebelde, o valor da consciência; como soldado, o valor da
proximidade da morte”.
Consciente do seu valor
em todas as atividades que exerceu, mas vacinado contra as glórias vãs do
mundo, como dizia, ele talvez não desse a mínima importância às homenagens que
se materializaram no Pico Guimarães Rosa, no Amazonas, e no reconhecimento ao
seu papel na solução dos conflitos com o Paraguai e os países amazônicos.
No íntimo, como confessou
na mesma entrevista a Günter Lorenz, ele gostaria de ser apenas um crocodilo
vivendo no São Francisco, rio que imortalizou em Grande sertão:
“Gostaria de ser um crocodilo, porque amo os grandes rios, pois são profundos
como a alma do homem. Na superfície são muito vivazes e claros, mas nas
profundezas são tranquilos e escuros como os sofrimentos dos homens. Amo ainda
mais uma coisa de nossos grandes rios: sua eternidade”.
Na manhã deste sábado, em
homenagem ao grande brasileiro que foi Guimarães Rosa, atirarei flores no local
em que o Iguaçu desagua no Paraná, nas proximidades das catedrais da
hidrelétrica que ele construiu em sonho, em Foz do Iguaçu, lembrando o que ele
escreveu em Ave, palavra: “É só na foz do rio que se ouvem os murmúrios
de todas as fontes”.
Aos 55 anos de sua morte,
Guimarães Rosa vive, na imortalidade de sua obra, profunda e caudalosa como os
grandes rios, desaguadouros de todas as fontes.
Em seu discurso de posse na ABL, praticamente em antevéspera do infarto que o vitimaria, o escritor expôs plausível justificativa para a morte : - A GENTE MORRE É PARA PROVAR QUE VIVEU.
ResponderExcluirBela reminiscência, meu amigo Antônio Carlos Lima. Sua evocação dessa figura ímpar que foi Guimarães Rosa, resgata, a par da importância do imenso escritor, a enormidade da pessoa humana de um grande homem.
ResponderExcluirObrigado!
ExcluirExcelente artigo, Antônio Carlos!
ResponderExcluirA identificação, por favor.
ExcluirPrimoroso resgate meu querido irmão-patrão Antonio Carlos.
ResponderExcluirQue texto primoroso 💙
ResponderExcluirObrigado. Lamentavelmente, não está aparecendo a identificação dos autores dos últimos comentários. Quem for comentar, por favor, procure a opção de identificação. Agradeço;
Excluir👏👏👏
ResponderExcluirOpa, meu querido Gerson Camarotti, honrado com sua leitura. Abraços
ExcluirQue texto forte: informações pouco conhecidas como o pico na Amazônia e a origem de Itaipu, mas também a beleza das flores oferecidas ao rio. Ele deve estar feliz com o presente. Abraço , Lygia.
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