LARA, O ANJO DE BRAZLÂNDIA

   Fosse um místico ou um poeta, desses que em tudo veem coisas extraordinárias, eu provavelmente começaria essa conversa dizendo que Lara é um anjo. Ou uma fada. Assim como os querubins e as fadas, ela tem asas, adora voar à toa e descer à terra para se alimentar de frutas ou sementes. E produzir milagres. 

 

Acontece que não sou místico nem poeta e, para ser franco, Lara é apenas uma arara. Uma arara vermelha, igual às que se veem com frequência em pequenos bandos ou solitárias, cruzando os céus do Cerrado. 

 

E o milagre que conseguiu, bem, pode ser apenas um dos efeitos positivos dessa pandemia, foi o de provocar um até então desconhecido sentimento de união entre os moradores da área rural de Brazlândia, cidade satélite a cinquenta quilômetros do Palácio do Planalto, em Brasília. 

 

Essa história começou no dia onze de novembro de 2019, quase dois anos atrás, quando Lara surgiu pela primeira vez num dos lugares mais bonitos de Brazlândia, o rancho Paraná, que visitei na manhã de sexta-feira, na esperança de encontrá-la.

 

Atraída pela propriedade da família de seu Francisco José de Carvalho, o Chico Paraná, de 83 anos (a esposa, Praceda Jakubowski, é neta de poloneses), que vive numa área de dezesseis hectares com árvores frondosas de todo tipo, um açude ao meio e uma imensa plantação de helicônias, bastões do imperador, alpínias, costus e outras flores tropicais, ela se aproximou.

 

Recebida com carinho, alimentada com nacos de melancia fresca pelos donos da casa, depois foi embora. No dia seguinte, estava de volta. Foi quando ouviu a algazarra das crianças na parada de ônibus localizada a poucos passos do rancho, numa estradinha de terra que liga as propriedades.

 

A parada de ônibus fascinou Lara. Todos os dias, depois do lanche às seis da manhã no rancho, ela observava de uma árvore próxima os meninos e meninas com seus uniformes azul e branco. Até que resolveu descer e brincar com eles. Foi amor ao primeiro contato.

 

Numa segunda-feira, resolveu seguir o ônibus com os alunos, e descobriu a escola em que estudavam, a Escola Classe Incra 6, que também visitei. Lembram de Maurício Babilônia, personagem de Cem anos de solidão que era seguido por um bando de borboletas amarelas quando saía à rua? Pois Lara age tal qual as borboletas de Garcia Márquez, perseguindo o ônibus, atrás das crianças. 

 

Na hora do recreio, Lara se enturmou por completo com os pirralhos na quadra da escola. Foi filmada brincando com a bola de futebol, enroscando-se nas pernas das crianças. Ela percebeu que ao lado da Escola Classe funcionava a Escola de Educação Infantil, para alunos da primeira à quarta série.  Migrou para o colégio dos pequeninhos. 

 

Mas aí chegou a pandemia. As escolas fecharam. Os alunos recolheram-se às suas casas. Mas, de tanto procurar, ela acabou descobrindo onde moravam alguns deles, e passou a frequentar os pátios e quintais de suas casas. Um dia, para tristeza de todos, desapareceu. 

 

“Ficamos desesperados”, conta Rosany, uma das filhas de seu Chico Paraná. Lara foi encontrada dias depois caminhando numa estrada. Estava ferida, as penas das asas tinham sido arrancadas por algum malvado da região que tentara mantê-la em cativeiro. 

 

Rosany transformou a varanda da casa, onde também funciona um restaurante e um pesque-pague, em enfermaria para Lara. Com a ajuda da comunidade, contratou um veterinário, que curou suas feridas. Ocorre que quando as penas renasceram, Lara podia, mas não sabia mais voar. O que só conseguiu quarenta e cinco dias depois de sessões de treinos diários. Voava e retornava ao seu abrigo. Sumiu novamente. Nova aflição. 

 

Mas desde o dia 2 de agosto, com a volta às aulas, ela retornou de vez.

 

A comunidade criou no WhatsApp o grupo Protetores de Lara, em que todos compartilham fotos e vídeos mostrando a arara em suas visitas e trocam informações sobre seu estado e seu comportamento. 

 

A Polícia Florestal resolveu colaborar, dando palestras sobre como melhor proteger a flora e os animais da região.

 

A professora Laura escreveu para os alunos uma bonita história ilustrada sobre Lara, para neles despertar a consciência ambiental. Um artista da região pintou um mural na escolinha infantil e outro na parada de ônibus com a imagem da arara voando. Lara virou até estrela de televisão, com a exibição, no DF-TV, de uma longa reportagem.

 

Quando, na sexta-feira, cheguei à Escola Classe, ela tinha acabado de fazer uma visita aos seus amiguinhos. Na escolinha infantil ao lado, a diretora Margareth Gonçalves de Almeida Gomes, que a recebera no dia anterior, estava exultante. Apresentou-me os estudantes em suas salas, cada um contando uma história sobre Lara. Disse-me que poderia encontrá-la no rancho Paraná, onde fazia pouso obrigatório e diário. 

 

Peguei uma estrada de terra, cheguei ao rancho, fui acolhido pelos donos como se fosse velho conhecido ou amigo distante da família. A celebridade e a paixão dos meninos e meninas de Brazlândia também não estava lá. Mas foi como se estivesse, pois nossa conversa – como é bom conversar com gente simples e boa! - girou toda em torno dela. Rosany até que tentou ajudar, gritando no meio das árvores: 

 

- Lara! Lara! Laaaaara! 

 

Mas ela não apareceu. 

 

Foi então que essa devota de São Francisco de Assis, amiga das árvores, das aves e dos passarinhos, me falou sobre a história do querubim. 


- Só pode ser um anjo. Disfarçado de arara, mas um anjo. Lara chegou aqui para nos dar alegria, nos tornar mais unidos e transformar nossas vidas - ela disse.


      Na volta para casa, já na BR-80, contemplando a paisagem de Brazlândia, as chácaras cheias de vida em volta, o lago do Descoberto refletindo o sol, vi, sob o claro céu azul, voando baixo, pouco acima do carro que nos conduzia, uma ave voando. 

 

Era o anjo. A fada. Quer dizer, era Lara.











 

Comentários

  1. Lara, o anjo colorido faz descer pelo rosto, gotas transparentes. Lara, desperta o anjo que existe em muitos de nós. Que os seus protetores a protejam dos demónio que também habitam em muitos de nós. Ainda há esperança!

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  2. Quanta sensibilidade neste texto angelical.
    Lara me lembrou outra personagem de uma bela e recente crônica de Antônio Carlos, "Uma lágrima na madruga" onde a "Fadinha Rayssa" também voa com os pés em quatro rodas de seu skate.
    Obrigado mais uma vez por sua sensibilidade.....
    Forte abraço

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  3. Lara, Lara! Ela nos encanta! Parabéns pela narrativa! Que sensibilidade! Nós agradecemos esse texto lindo que descreve um pouco da história da nossa encantadora Lara! Como diz nossa coordenadora Claudiane:
    _ Nossa Lara é um anjo de penas rubras, a nos lembrar cotidianamente que estamos num lugar lindo, incrível, trabalhando para outros anjos aprenderem a voar. Nossas crianças
    Concordo com ela. Realmente, a Lara conquistou todos os corações não só das crianças, mas pessoas do DF todo me perguntam por ela. Ela já é conhecida nacionalmente. É muito amor envolvido. Gratidão!

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    1. Quem agradece sou pela oportunidade de ter conhecido essa comunidade e viver essa linda história. Obrigado.

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  4. Linda a história da Lara e sua sensibilidade ao conta-me.
    Devemos todos aprender a conviver nesse equilíbrio respeito ao meio ambiente.
    Que venham muitas outras Laras.....

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  5. Mais uma bela, comovente e humana aventura, contada por esse mágico contador de histórias, Antônio Carlos Lima, que sabe tocar nosso coração e iluminar nossa alma com sua maestria e visão humana. Gratidão por ter nos trazido a linda história de Lara.

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