O Brasil e as borboletas amarelas




            O Brasil esteve, quase sempre, de costas para a América Latina. Somem-se à barreira da língua os distintos processos históricos, sociais e culturais e a ausência de uma política efetiva de integração regional - e estará explicada a distância que separa as Américas hispânica e portuguesa.

 

         No início dos anos 60 do século passado, houve experiência exitosa de diplomacia cultural, com a implantação, em todos os países do subcontinente, de centros e institutos de estudos, à semelhança da Aliança Francesa e do Instituto Goethe, destinados à difusão da língua portuguesa e à promoção da cultura brasileira. Marco mais ambicioso foi o acordo firmado em 1986 pelos presidentes Sarney, Alfonsín (Argentina) e Sanguinetti (Uruguai) visando à integração econômica, cultural, energética e turística das nações sul-americanas. Iniciativa que se frustrou, em parte, pelo insucesso do Mercosul, o mercado comum que não passou de um acordo aduaneiro.  

 

         A literatura e as artes, pelo menos em alguns momentos da história, lograram uma aproximação, à margem dos canais oficiais. Já nos anos 30 e 40, publicaram-se no Brasil diversos clássicos latino-americanos, os quais só podem ser encontrados hoje em sebos de raridades. Nos anos 60 e 70, sobretudo, os brasileiros foram seduzidos e fortemente influenciados pela cultura e pela história dos vizinhos de fala espanhola. 

 

Até o início dos anos 80, a música de Violeta Parra (Chile), Mercedes Sosa (Argentina) e Pablo Milanez (Cuba); as culturas milenares dos incas, maias e astecas, à luz de novos estudos e descobertas arqueológicas; a revolução cubana; e, principalmente, os livros de Julio Cortázar, Jorge Luís Borges, Gabriel Garcia Márquez, Pablo Neruda, Octavio Paz, Augusto Roa Bastos e Mário Vargas Llosa fascinavam estudantes, artistas e intelectuais, do Maranhão ao Rio Grande do Sul, da Europa aos Estados Unidos. 

 

Foi a época do boom latino-americano, que coincidiu com um período de ditaduras em diversos países, incluídos Brasil e Argentina, quando aqueles e outros autores alcançaram o status de celebridades mundiais, com a publicação, e excelente acolhida, na Europa e nos Estados Unidos, de obras-primas que falavam de um mundo desconhecido, de uma realidade espantosa e, por isso rotuladas genericamente de realismo fantástico, num reducionismo que sempre os incomodou. 

 

O mexicano Octavio Paz escreveu no ensaio Alrededores de la literatura hispano-americana que, depois das literaturas inglesa e russa, no século XIX, a grande novidade, no mundo ocidental, no século XX, foi a literatura produzida na América Latina, “en sus dos grandes ramas: la brasileña y la hispano-americana”. Uma literatura que se apresentava em dois idiomas, o espanhol e o português, herdeira de Miguel de Cervantes e Luiz Vaz de Camões.

 

A história desse fenômeno é revivida no livro Mariposas amarillas y los señores dictadores (As borboletas amarelas e os senhores ditadores), da escritora e editora alemã Michi Strausfeld, uma das mais conceituadas especialistas da atualidade em literatura latino-americana no mundo. Mais que isso: nas 576 páginas da obra, disponível por enquanto em língua espanhola. a autora conduz o leitor num percurso apaixonante pela história do continente, mesclando os relatos dos historiadores com os textos dos ficcionistas, descrevendo a experiência de ter convivido com muitos desses criadores.

Para ela, a literatura do século XX foi um dos principais instrumentos de construção das identidades latino-americanas. Romances de escritores como Carlos Fuentes, Alejo Carpentier, Gabriel García Márquez, Mário Vargas Llosa e Júlio Cortázar, entre tantos outros, contemporâneos ou predecessores, como Juan Rulfo, Jose Maria Arguedas e Ciro Alegria, revelaram ou iluminaram episódios da história esquecidos, desmerecidos ou manipulados pelos historiadores.   

 

O mesmo papel teriam cumprido textos que desmistificaram a figura de Colombo e denunciaram a extensão do horror que representou a destruição das civilizações pré-colombianas pela ação genocida dos conquistadores. Muito a propósito, Strausfeld recolhe uma frase de A verdade das mentiras, livro em que Mário Vargas Llosa analisa as obras que marcaram os últimos cem anos: “A literatura conta a história que a história que escrevem os historiadores não pode nem sabe contar”. 

Vargas Llosa e García Márques, anos 60 

 

Em dezesseis capítulos, a obra da escritora alemã esquadrinha uma história de cinco séculos, da conquista à colonização, passando pelas lutas por independência, a irrupção de repúblicas dominadas por ditadores e caudilhos (daí, o subtítulo do livro) até os conflitos da atualidade, que envolvem, além dos males da instabilidade política, os problemas relativos a migrações e drogas, tudo sob a ótica da criação literária. 

 

Consciente da distância cultural que separa o Brasil dos demais países do subcontinente, sem ocultar maior afinidade/intimidade com autores de língua espanhola, com os quais conviveu, Michi Strausfeld  reconhece a importância da  literatura brasileira produzida a partir do final do século XIX. 

 

Na sua avaliação, Machado de Assis, autor de “romances esplêndidos, assombrosamente modernos”, é um prodígio, e sua obra se insere na tradição de Cervantes, Sterne e Diderot, compartilhando juízo do escritor mexicano Carlos Fuentes (1928-2012). Gilberto Freyre, sobretudo com Casa grande e senzala, “é o quarto apóstolo da consciência cultural dos brasileiros” (os outros seriam Niemeyer, na arquitetura, Lúcio Costa no urbanismo e Portinari na pintura). A autora considera Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa, o romance brasileiro mais importante e, ao mesmo tempo, uma das grandes obras da literatura universal do século XX. 

 

O Brasil, no seu entendimento, deu o salto cultural para a modernidade com a Semana de Arte Moderna, realizada em 1922, a partir de quando pintores (Di Cavalcanti, Tarsila do Amaral), músicos (Villa-Lobos) e escritores (Oswald e Mário de Andrade) romperam os laços que submetiam culturalmente o país à Europa, e passaram a competir em igualmente com os artistas do Velho Mundo. 

 

Nota ainda que, enquanto os modernistas revalorizaram os indígenas, Gilberto Freyre dedicou-se ao reconhecimento da contribuição dos negros africanos na formação do povo brasileiro. Ela ressalta a dimensão de estudos sociológicos como Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda, e, sobretudo, Os sertões, de Euclides da Cunha, sobre a Guerra de Canudos. Há espaço generoso para as obras do sociólogo Darcy Ribeyro e do romancista João Ubaldo Ribeiro. Pelo menos dois maranhenses estão citados no livro: o poeta Gonçalves Dias, que deu caráter puramente nacional à sua poesia, e o jornalista e escritor José Louzeiro, com suas obras sobre a realidade dos grandes centros urbanos. 

 

A escritora alemã ressalta que, apesar da riqueza de sua literatura, que ela considera de valor universal, o Brasil manteve-se quase à margem do boom literário da região. As exceções, observa, foram Guimarães Rosa, que, a partir de 1964, teve o seu Grande sertão: veredas traduzido para vários idiomas, sendo recebido com aplausos na Europa e nos Estados (menos na América Latina, ela diz); Clarice Lispector (“hoje um ícone cuja obra completa é lida com entusiasmo em todas as partes") e Jorge Amado, também muito apreciado por europeus. 

 

Um dos méritos da obra, como observou Mário Vargas Llosa em recente artigo publicado no Estado de S. Paulo (21.03.2021),  é abordar as diferentes literaturas produzidas na América Latina “como um todo integral, muito variado, mas orgânico”. Não tão orgânico assim.

 

Sabe-se que prêmios são insuficientes para determinar a qualidade de uma literatura, mas é impossível, ao final da leitura de Mariposas amarillas y los señores dictadores, não considerar o fato de que até hoje a literatura brasileira não foi distinguida com o Prêmio Nobel, a maior láurea literária internacional, enquanto as dos   vizinhos conquistaram seis: a chilena, com Gabriela Mistral e Pablo Neruda; a guatemalteca, com Miguel Ángel Asturias; a colombiana, com Gabriel García Márquez; a mexicana, com Octavio Paz (México); e a peruana, com Mario Vargas Llosa. 

 

E o problema não é, como se imaginava, a língua, pois José Saramago, português do Ribatejo, arrebatou o seu Nobel em 1998, enquanto o Brasil, com sua literatura imensa, permanece, quase de costas para a América Latina, mirando o Atlântico, a ver navios. Trata-se de uma grande injustiça.

 

          P.S.: O título do livro, Borboletas amarelas, é uma referência às borboletas que, inexplicavelmente, precediam as aparições de Maurício Babilônia, personagem de Cem anos de solidão, de Gabriel Garcia Márquez. Elas são um dos elementos mágicos do mais importante livro do chamado boom latino-americano.  

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                         

 

 

 

Comentários

  1. Triste constatação, a de uma nação de costa para o seu continente,orando o mar, a ver navios passarem ao longe.

    ResponderExcluir
  2. Excelente artigo, e uma ótima sugestão literária. Quantas histórias rendem as letras em todo o mundo.

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

Guimarães Rosa nas alturas

Quanto vale um poeta?

A vantagem do silêncio sobre a adesão do MA à Independência

Gonçalves Dias e a Independência do Brasil

Os amigos maranhenses de Guimarães Rosa

A poesia visceral de Jorge Abreu

Um governador no sertão

Mondego: anjo e demônio da Praia Grande