LEITURA: Jorge Luis Borges
A SUPERSTICIOSA ÉTICA DO LEITOR
Jorge Luís Borges

Ouviram
dizer que a adjetivação não deve ser trivial, e vão considerar que uma página
está mal escrita se não houver surpresas
na junção de adjetivos com substantivos,
embora sua finalidade geral esteja cumprida.
Ouviram
dizer que a concisão é uma virtude, e
consideram conciso quem se demora em dez frases breves e não quem domina
uma longa. (Exemplos normativos dessa
charlatanice da brevidade, desse frenesi sentencioso, podem ser encontrados
na dicção do célebre estadista dinamarquês Polônio, de Hamlet, ou do Polônio natural, Baltazar Gracián).
Ouviram
dizer que a repetição próxima de algumas sílabas é cacofônica, e fingirão que
em prosa isso os incomoda, embora no verso lhes proporcione um gosto especial,
penso que fingido, também. Ou seja, não percebem a eficácia do mecanismo, mas a
disposição de suas partes. Subordinam a emoção à ética, ou, antes, a uma
etiqueta incontestável. Generalizou-se tanto essa inibição que quase não
restam mais leitores, no sentido ingênuo
da palavra, mas todos são críticos potenciais.
Essa
superstição é tão aceita que ninguém se atreverá a admitir ausência de estilo
em obras que o tocam, principalmente se forem clássicas. Nao há livro bom sem o
seu atributo estilístico, do qual
ninguém pode prescindir — a não ser o
próprio autor. Vejamos o exemplo do Quixote. A crítica espanhola, diante da
comprovada excelência desse romance, não quis pensar que seu maior (e talvez o
único irrecusável) valor pudesse ser o psicológico, e lhe atribui dons de
estilo que a muitos parecerão misteriosos.
Na
verdade, basta rever alguns parágrafos do Quixote
para sentir que Cervantes não era estilista (ao menos na presente acepção
acústico-decorativa da palavra) e que lhe interessavam sobremaneira os destinos
de Quixote e de Sancho para que se
deixasse distrair por sua própria voz. Agudeza y arte de ingenio, de Baltazar Gracián — tão laudatória de
outras prosas narrrativas, como a de Guzmán
de Alfarache — não se digna de lembrar Dom
Quixote. Quevedo faz versos satíricos sobre sua morte, e o esquece.
Alguém
poderá objetar que os dois exemplos são negativos; Leopoldo Lugones, em nosso
tempo, emite um juízo explícito: “O estilo é a fraqueza de Cervantes, e os
estragos causados por sua influência foram graves. Pobreza de cor, insegurança
de estrutura, parágrafos ofegantes que
nunca se resolvem, desenvolvendo-se em convólvulos intermináveis; repetições, falta
de proporção, esse foi o legado dos que, não vendo senão na forma a suprema realização
da obra imortal, ficaram roendo a casca cujas rugosidades escondiam a força e o sabor”. (El império jesuítico, página 59). Também
nosso Groussac: “Se é para descrever as
coisas como são, teremos de confessar que uma boa metade da obra tem a forma
demasiadamente frouxa e desalinhada, o que é suficiente para justificar o humilde idioma que os rivais de
Cervantes lhe imputavam. E com isto não me refiro única nem principalmente às
impropriedades verbais, às intoleráveis repetições ou trocadilhos, nem aos
trechos de pesada grandiloqüência que nos aborrecem, mas à contextura
geralmente desmaiada dessa prosa de sobremesa” (Crítica literária, página 41).
Prosa
de sobremesa, prosa conversada e não declamada, é a de Cervantes, e outra não lhe
faz falta. Imagino que essa minha observação deve ser justa no caso de Dostoievski,
de Montaigne ou de Samuel Butler.
Esta
fatuidade do estilo se enfatua em outra fatuidade mais patética, a da perfeição. Não há um escritor métrico,
por mais casual e nulo que seja, que não
tenha cinzelado (o verbo costuma figurar em sua conversa) seu soneto perfeito,
monumento minúsculo que custodia sua possível imortalidade, e que as novidades
e aniquilações do tempo deverão respeitar. Trata-se de um soneto sem rípios,
geralmente, mas que é todo ele um rípio;
ou seja, um resíduo, uma inutilidade.
Essa
falácia em perduração (Sir Thomas Browne: Urn
Burial) foi formulada e recomendada por Flaubert nesta sentença: “A
correção (no sentido mais elevado da palavra) faz com o pensamento o que
fizeram as águas da Estígia com o corpo de Aquiles: tornam-no invulnerável e
indestrutível” (Correspondance, II,
página 199). A sentença é categórica mas não conheço nenhuma experiência que a
confirme. (Dispenso as virtudes tónicas da Estígia; essa reminiscência infernal
não é um argumento, é uma ênfase.) A página
de perfeição, a página na qual nenhuma palavra pode ser alterada sem prejuízo,
é a mais precária de todas. As mudanças da linguagem apagam os sentidos
laterais e os matizes; a página “perfeita” é a que é composta desses valores sutis
, e a que, com maior facilidade se desgasta. Inversamente, a página que tem vocação de imortalidade pode atravessar o fogo das
erratas, das versões aproximativas, das leituras distraídas, das
incompreensões, sem deixar a alma na prova.
Não
se pode mudar impunemente (é o que afirmam aqueles que trabalham no estabelecimento de seu texto) nenhuma das
linhas fabricadas por Gôngora; mas o Quixote
ganha batalhas póstumas contra seus tradutores e sobrevive a toda versão
descuidada. Heine, que nunca o ouviu em espanhol, pode celebrá-lo para sempre.
Mais vivo é o fantasma alemão ou escandinavo ou hindustânico do Quixote que os ansiosos artifícios
verbais do estilista.
Eu
não gostaria que a moralidade desta comprovação fosse vista como desespero ou
niilismo. Não quero fomentar
negligências, nem creio numa virtude mística da frase tosca e do epíteto
grosseiro. Afirmo que a emissão voluntária desses dois ou três agrados
menores — distrações visuais da metáfora, auditivas do ritmo e imprevistas da
interjeição ou o hipérbato — costuma nos provar que a paixão do tema tratado
manda no escritor, e isto é tudo.
A
aspereza de uma frase lhe é tão indiferente à genuína literatura quanto sua suavidade. A economia prosódica não é menos
forasteira à arte que a caligrafia ou a ortografia ou a pontuação: certeza que
as origens judiciais da retórica e musicais do canto smpre nos esconderam. O equívoco preferido da literatura de hoje é a ênfase. Palavras definitivas, palavras
que postulam sabedorias divinatórias ou angelicais ou de uma firmeza mais que
humana — único, nunca, sempre, todo, perfeição, acabado — são
do comércio habitual de todo escritor.

Agora
quero lembrar-me do future, não do
passado. Já se pratica a leitura em silêncio, sintoma venturoso. Já existe
leitor calado de versos. Dessa capacidade sigilosa a uma escritura puramente
ideográfica — comunicação direta de experiências, não de sons — há uma
distância incansável, mas sempre menos intensa que o futuro.
Releio essas negações e penso. Ignoro se a música sabe desesperar da música e o mármore do mármore, mas a literatura é uma arte que sabe profetizar aquele tempo em que já terá emudecido, e encarniçar-se com a própria virtude e enamorar-se da própria dissolução e cortejar seu fim.
Releio essas negações e penso. Ignoro se a música sabe desesperar da música e o mármore do mármore, mas a literatura é uma arte que sabe profetizar aquele tempo em que já terá emudecido, e encarniçar-se com a própria virtude e enamorar-se da própria dissolução e cortejar seu fim.
(In
‘Discussão’, parte integrante das Obras Completas de Jorge Luis Borges, vol. I.
Editora Globo. 1998. Pgs 214 a 217. Tradução de Josely Vianna Baptista).
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