Hemetério, o professor abolicionista de Codó
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Professor Hemetério dos Santos |
Assim como Maria
Firmina (1822-1917), que ganhou notoriedade nos meios acadêmicos e estudantis
depois de sua redescoberta nos anos 70 do século passado pelo poeta Nascimento
Morais Filho, Hemetério dos Santos virou, repentinamente, tema de estudos em
diversas universidades por sua contribuição, como professor e escritor, na luta
pela inclusão do negro na sociedade e pelo fim do preconceito racial.
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Hemetério dos Santos: de fraque e cartola |
A medida da
curiosidade que hoje desperta esse maranhense quase ignorado no Maranhão desde
sua morte há 81 anos foi dada há duas semanas pela Folha de S. Paulo. O jornal de maior circulação e influência no
Brasil dedicou um podcast (reportagem
em áudio, acessível pela Internet), de cerca de uma hora de duração, para
contar, em tom quase épico, “a história do professor negro e antirracista que
ensinou durante a escravidão”.
Artigos e teses
de mestrado, como a de Aderaldo Pereira dos Santos, da Universidade Federal do
Rio de Janeiro, sobre a trajetória do professor negro, multiplicam-se nos
centros acadêmicos. Lembrou-se que, desde 1944, o professor codoense é patrono
da cadeira número 25 da Academia Brasileira de Filologia. No bairro Jacarepaguá,
na zona norte do Rio de Janeiro, uma escola pública o homenageia: a Escola
Municipal Hemetério dos Santos.
É quase a glória,
para quem, não obstante os méritos intelectuais demonstrados como professor,
filólogo, poeta e conferencista, foi vítima de preconceito racial no meio culto
em que viveu e
A língua como libertação
Hemetério José
dos Santos nasceu a 13 de março de 1858 em Codó, à época uma pequena povoação à
margem do rio Itapecuru, formada por lavradores, a maioria escravos, e
comerciantes. Filho da escrava Maria e do comerciante Theóphilo José dos
Santos, antes dos dez anos foi levado para São Luís.
Na capital, estudou
no prestigioso Colégio Imaculada Conceição, dos padres Raymundo da Purificação
Lemos, Theodoro de Castro e Raymundo Fonseca, instalado à rua São Pantaleão (depois, à rua do Sol),
onde teve como colega, dentre outros filhos da aristocracia de seu tempo, o
futuro governador Benedito Leite. Em São Luís provavelmente também conviveu com
os irmãos Aluísio e Artur Azevedo, os quais, adolescentes como ele, já se
aventuravam no mundo do teatro e da literatura.
Foi no Colégio
Imaculada Conceição que Hemetério passou a cultivar o gosto pela gramática. Ali
foi educado segundo os métodos do professor Francisco Sotero dos Reis
(1800-1871), para quem o ensino da língua,“como instrumento político e como órgão
das artes da palavra, primava sobre todas as disciplinas de Humanidades, e de
todas era como base e fundamento único”, nas palavras do próprio Hemetério.
Em 1875, aos 16
anos, mudou-se para o Rio de Janeiro, onde complementou os estudos e, aos 20
anos, tornou-se professor do Colégio Pedro II, o mais importante do Império, e
do Colégio Militar. Publicou Gramática
elementar da língua portuguesa; Livro dos meninos: contos brasileiros de acordo
com os processos modernos; e outras versões de sua gramática para alunos da Escola Normal do
Distrito Federal e do Colégio Militar.
No mesmo ano em
que Machado de Assis publicava “Memórias póstumas de Brás Cubas” e Aluísio
Azevedo lançava em São Luís “O Mulato” (1881), Hemetério dos Santos trazia à
luz o “Livro dos meninos”, compêndio de textos destinado a jovens estudantes
sobre trabalho, higiene e instrução, no qual condena com veemência o
escravismo. Também escreveu poesias (“Frutos cadivos”), crônicas e
conferências, como “Pretidão de amor” e “Carta aos maranhenses”, documentos em
que defende a dignidade dos negros após a abolição e, nesta última, mais
enfaticamente, o ensino correto da língua portuguesa.
Casou-se com
Rufina Vaz de Carvalho, neta do editor e tipógrafo Francisco de Paula Brito,
negro de grande prestígio nos meios intelectuais, o que pode ter contribuído para
a sua inserção social.
Demolidor de preconceitos
Em artigo
publicado na revista da Academia Brasileira de Filologia (Ano II, No. 2, Rio de
Janeiro), em 2003, o escritor e filólogo
maranhense Antonio Martins de Araújo já situava o professor Hemetério entre os
grandes gramáticos de sua época. E assinalava que, “nascido em berço pobre,
sabe-se lá quanto sofrimento e quanto preconceito ele teve de romper para
chegar ao ponto que chegou”. O título do artigo resume a tese de Martins:
“Hemetério José dos Santos, o demolidor de preconceitos”.
O professor
Hemetério era, segundo diversos testemunhos, pessoa de difícil trato. Polêmico,
trajava-se de maneira extravagante. Usava fraque e cartola escuros e fumava
charutos na rua, o que contribuía para alimentar o perfil caricato, alimentado
pelo preconceito racial, com que era visto pela sociedade carioca branca e
letrada. O jornalista e poeta satírico Emílio de Menezes (1866-1918), que
desfrutava de grande popularidade, o desancou muitas vezes na imprensa, e
sempre com viés racista.
Das provocações feitas a intelectuais que julgava omissos ou pouco engajados na luta pela dignidade dos negros, antes e após a abolição (atacou o crítico José Veríssimo e o jurista Rui Barbosa), a mais prejudicial ao conceito público do professor Hemetério foi a que dirigiu ao escritor Machado de Assis.
Poucos dias
depois da morte do autor de “Dom Casmurro”, a 29 de setembro de 1908, publicou
um artigo violento contra o escritor (“A arte de Machado de Assis é uma arte
doentia, de uma perversidade fria”, “A sua poesia foi tão incolor como seus
trabalhos ulteriores”), o acusa de omissão na causa antiescravagista e de ter
abandonado a mãe adotiva. O episódio é narrado por Josué Montello no livro “Os
inimigos de Machado de Assis”. Nele, o romancista maranhense transcreve o texto
integral do artigo do professor Hemetério e a violenta reação da
intelectualidade carioca.
Mas o tempo
passou e, com ele, a indisposição e a ignorância em relação a esse maranhense negro
do Codó, o “demolidor de preconceitos”, na definição precisa do professor
Antonio Martins de Araújo.
Assim como
sucedeu com Maria Firmina dos Reis, também mestra e escritora esquecida durante
um século, o Brasil começa a desvelar “a história do professor negro e
antirracista que ensinou durante a escravidão”, como anunciou a Folha de S.
Paulo em seu podcast. Antes tarde do
que nunca.
(Publicado na edição
de hoje, 25 de julho de 2020, no jornal O ESTADO DO MARANHÃO).
Otimo texto, melhor ainda a lembrança: Hemetério José dos Santos exige justiça. Ele combateu num tempo inóspito!
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