O Duque de Giz
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Reunião no terraço do Castelo de Giz, à beira do Rio Corda. O Duque está na margem direita da foto, sentado e de boina |
Um dia, de passagem pela cidade, um caixeiro viajante lhe disse que a sua casa, por ser ampla e ter a fachada pintada de branco, assemelhava-se a um castelo de giz.
Ele gostou da imagem, e o caixeiro, para agradá-lo
duplamente, levou-lhe, na viagem seguinte, uma placa de alumínio com a
inscrição que identificaria até hoje, na fachada, a morada branca mais célebre
dos meus tempos de menino em Barra do Corda: Castelo de Giz.
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O Duque e irmãs, em frente ao Castelo |
Concedeu-se, assim, o título de Duque de Giz. E exerceu até
fim da vida suas funções, digamos, nobiliárquicas, em meio a súditos e
plebeus, seus muitos amigos, que participavam, convictos e compenetrados,
daquela divertida encenação.
Era um homem feliz. Pelo menos, não me lembro de tê-lo
visto triste ou aborrecido alguma vez. Para ele, a vida era uma festa.
Dizia que as pessoas poderiam ser o que bem
entendessem, inclusive ricas, bastando para isso a imaginação. E dava o próprio
exemplo. Não sendo rico nem nobre, embora abastado para os padrões locais,
fazia da sua e da vida dos amigos uma eterna celebração.
O castelo, uma casa ampla de duas águas, cobertura
de telha vã, muro com gradis de ferro batido em forma de lanças, piso de
mosaico decorado, foi local de memoráveis festas e reuniões que se transformavam
em tertúlias etílico-literárias, nas quais o duque declamava poemas e fazia discursos
de consagração dos vultos do passado e das belezas naturais daquele idílico recanto
sertanejo.
E, como tinha boas acomodações, além de um anfitrião
espirituoso e acolhedor, a casa era também o local de hospedagem dos políticos
e outras personalidades importantes que visitavam o município.
A duquesa Guaracy, elegante e simpática, comungava
do espírito do faz-de-conta, e ria dos exageros do marido, sempre atenta aos
passos dos dois filhos, o príncipe Denys e a princesa Ana Luiza.
Não como traço da nobreza fake, mas por puro capricho, o duque trajava-se invariavelmente de
branco: camisa, bermudas, sandálias e boné brancos. Completavam o visual a
cabeleira domada por brilhantina e um óculos escuros ray-ban.
Seus amigos, que reunia no terraço cimentado da
casa em frente ao porto para farras homéricas, eram todos príncipes, cujos
títulos eram avocados solenemente. “Príncipe Carlos Augusto Franco, senhor das Duas
Ilhas e terras adjacentes,
apresente-se!”. O indicado respondia “presente!”, o que era uma senha para a
virada dos copos.
Como um deus sertanejo, dava nome a todas as coisas.
Cisne Branco era um pequeno
barco equipado com motor de popa Johnson
de 20 HP, no qual navegava aos domingos com a família, rio acima, rio abaixo, antes
de ancorar no porto do Guajajara Iate Clube, em cujo palco discursava, às vezes
em hora inconveniente, como na abertura do Carnaval, durante o reveillon, quando todos só queriam
dançar. Era o mais animado folião dos nossos carnavais.
Mandubé era o jipe Wyllis
sem capota que usava para fazer cobrança dos alugueis de casas e quartinhos que
possuía, sua principal fonte de renda. Ao fusquinha branco, motor 1300, presente
para a duquesa, deu o estranho nome de Sundababe.
Até a churrasqueira em torno da qual reunia os amigos, ganhara nome: Infeliz Perpetinha, alusão ao sofrimento
da jovem estudante sequestrada por índios guajajaras durante o massacre do Alto
Alegre.
Eu frequentava o castelo porque era amigo do
príncipe, que tinha uma escola de datilografia, onde instalamos, ao lado de uma
mesa de pingue-pongue, a redação de “O Pássaro”, jornal mimeografado que
publicávamos aos sábados. O jornalzinho era um sucesso, mas nem toda semana
estávamos dispostos a produzi-lo, pelo que éramos repreendidos severamente pelo
duque. “Jornal não pode deixar de circular; larguem de preguiça e mãos à obra”,
dizia. E o jornal circulava.
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Redação de "O Pássaro": o príncipe (sem camisa) e eu |
Essa a razão do telefonema que dei em seguida ao
príncipe Denys, o único da família vivo, em Barra do Corda.
Foi um reencontro virtual de emoções.
O duque, ele me lembrou, morreu há 31 anos, a
duquesa não suportou a vida sem a sua companhia, mas esperou que a princesa Ana
Luiza se fosse antes dela para também partir. Denys vive no castelo com a
família, mas sem os ritos do passado. Pedi que identificasse o pai na foto, e
ele não teve dúvida: ali estava o duque, ao lado de Perón.
Lembrei do Duque de Giz porque neste domingo, 3 de
maio, é o aniversário de fundação de
Barra do Corda, a terra do menino que fui. E é impossível pensar nela sem
lembrar a figura de seu mais ardoroso cantor e amante.
Há 185 anos, um desbravador aventureiro resolveu
que ali, na confluência de dois rios selvagens, no coração do sertão, seria erguida
mais do que uma cidade, uma réplica do paraíso.
E que nele haveria um poeta, o Duque de Giz, que me
faria acreditar, naqueles tempos felizes, que a vida era uma festa e uma eterna
brincadeira.
Já estive neste castelo recepcionada, não me lembro por quem.Fui com a família do meu tio Edmar Fialho Souza . Ressalto como lembrança histórica, que o meu bisavô materno, Fotunato Fialho foi o primeiro prefeito de Barra do Corda, segundo o livro da árvore genealógica da Família Fialho , homenageado com uma rua com seu nome.
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