O antigo povo das águas
Livro a ser lançado nesta segunda-feira em
Brasília revela a existência de uma civilização que, há mais de mil anos, vivia
sobre as águas na Baixada Maranhense
Há pelo menos 1.200 anos, a Baixada
Maranhense, uma região de 20 mil quilômetros de terras baixas e inundáveis
situadas a oeste de São Luís, abrigou uma civilização que vivia em aldeias formadas
por conjuntos de palafitas erguidas no leito de rios e no meio dos lagos. Esse
povo, que escolheu viver sobre as águas provavelmente por questões de defesa e
subsistência, fabricava utensílios de cerâmica e pedra e se comunicava com
populações da Amazônia, do Caribe e da América Central.
Os vestígios
mais evidentes desses assentamentos humanos são as estearias, aglomerações de
milhares de esteios de madeira maciça que permanecem por séculos fincados no
leito das águas de rios e lagos em municípios como Viana, Cajari, Penalva, Santa
Helena, Pinheiro e Nova Olinda.
Os troncos de madeira serviam de pilares
de sustentação das moradias suspensas. Entre os esteios, sob a água, enterrados
ou na superfície do solo, encontra-se um vasto e rico material arqueológico:
utensílios em cerâmica decorada e artefatos de pedras, como estatuetas e
ferramentas utilizadas por aquele povo.
Cerca de 10 mil vasilhames e fragmentos
cerâmicos e líticos das principais estearias foram recolhidos e estão sendo catalogados
e estudados nos últimos cinco anos por
professores e estudantes do Laboratório de Arqueologia (Larq) da Universidade
Federal do Maranhão. Especialistas da UFMA e de outras universidades do Brasil
e do exterior analisam o material sob enfoques diversos das ciências humanas e
sociais. Datações radiocarbônicas revelam que esse povo viveu naqueles locais
entre os anos 3.000 a.C. e 800 d.C.
A
civilização lacustre
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O livro a ser lançado nesta segunda-feira |
O livro apresenta os sítios arqueológicos
estudados, com suas localizações, e traz o mapeamento dos esteios, obtido com a
ajuda de equipamentos de georeferenciamento e fotos aéreas, e é ricamente
ilustrado com fotografias dos artefatos mais importantes sob o ponto de vista
tecnológico e simbólico: vasilhames de cerâmica com pinturas e artefatos
líticos. É a primeira vez que esse
material é mostrado ao público.
A obra é apresentada pela antropóloga Anna
Roosevelt, da Universidade de Illinois, nos Estados Unidos, pioneira em estudos arqueológicos na Amazônia.
Bisneta do presidente norte-americano Theodore Roosevelt (1858-1919), que
morreu em consequência de uma malária contraída durante viagem à Amazônia em
1916, Anna visitou as estearias maranhenses em janeiro de
2018. Ela afirma, no prefácio do livro de Navarro, que “o padrão de
assentamento do povo das palafitas no Maranhão é não apenas único entre as
culturas arqueológicas conhecidas”, mas “sua maneira de subsistência em
recursos naturais era também especial.”
Anna Roosevelt observa paralelos entre os
povos das palafitas e os extintos Warao da Venezuela, que adotavam o mesmo tipo
de moradia. Ela acredita que os estudos realizados pelo Larq podem ajudar a
elucidar a antiga sequência cultural de um habitat aquático ainda pouco
estudado e orientar a futura gestão de recursos naturais e desenvolvimento
econômico no Brasil. “A identificação das espécies de árvores das terras baixas
da antiguidade pode dar uma perspectiva valiosa para o reflorestamento e restauração
dos níveis de precipitação regional”, propõe.
A ex-presidente do Iphan, Kátia Santos Bogéa,
destaca a importância da publicação, patrocinada pelo órgão do patrimônio e pela
Fundação Sousândrade, da UFMA. Ela diz ter esperança de que escavações
arqueológicas sistemáticas ainda poderão trazer muitas novidades de como vivia
o homem pré-histórico do Maranhão.
Primeiras
pesquisas
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A estearia do Sítio Encantado, em Pinheiro: pilares de madeira pré-históricos |
Em seguida, estabeleceu comparações dos
achados das estearias com as cerâmicas
encontradas no Amapá e no baixo Amazonas e com a arte marajoara. Ele
construiu a hipótese com base na descoberta, no lago Cajari, de três
muiraquitãs – artefatos talhados em
pedra de jade, de cor esverdeada, com formas zoomórficas e
antropomórficas, aos quais são atribuídos poderes sobrenaturais. Objetos de uso ritual ou como adorno para demonstração de poder, haviam sido encontrados antes no baixo Amazonas.
Lopes depositou esse material arqueológico
no Museu Nacional, cujo acervo foi quase todo destruído pelo incêndio que
devastou o prédio da instituição em 2018.
As pesquisas
só foram retomadas nos anos 70 do século passado, quando Mário Ferreira Simões
ampliou os estudos de Raimundo Lopes, medindo as áreas dos esteios no lago Cajari,
em Viana. Simões obteve a primeira datação carbônica de resíduos de madeira de
uma estearia, apontando para o ano 570 d. C. Outro estudioso que se debruça
sobre o tema é o maranhense Deusdedith Carneiro Filho, professor de História na
Unviersidade Federal do Maranhão
Nos anos 90,
a Universidade Federal do Maranhão passou a dar atenção aos sítios
arqueológicos da Baixada Maranhense. Em 2014, implantou o Laboratório de
Arqueologia, cuja coordenação foi entregue a um especialista, o professor
Alexandre Guida Navarro, graduado em História com doutorado em Antropologia na
Universidade do México e aperfeiçoamento na Universidade de Illinois, nos
Estados Unidos.
O levantamento, que incluiu escavações, e
as pesquisas posteriores contaram com apoio do Instituto do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional (Iphan), Fundação de Amparo à Pesquisa no
Maranhão (Fapema) e Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico
(CNPq).
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Alexandre Navarro, o reitor da UFMA, Natalino Salgado, e a ex-presidente do Iphan, Kátia Bogéa |
“As
estearias são uma evidência única no contexto da arqueologia de todas as
Américas. Como o ambiente aquático preservou os vestígios, os arqueólogos podem
recuperar informações preciosas sobre a vida de uma população que vivia no Maranhão
500 anos antes da chegada dos colonizadores”, afirma, esperançoso e confiante,
Alexandre Navarro.
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