O padre Vieira no Maranhão
Na biografia
que deixou inédita e inconclusa do padre Antonio Vieira (1608-1697), João
Francisco Lisboa mostra-se escandalizado com a defesa que o jesuíta fez, em
cartas e sermões, da escravidão negra, em substituição à escravidão dos
indígenas, que queria proibir, mas praticava e aceitava segundo critérios também
condenáveis. “Aberrações tão incríveis não podem recomendar o grande orador à
estima e admiração da posteridade”, escreveu Lisboa.
Hoje, 322 anos depois de sua morte,
Vieira mantém o prestígio e a fama que,
nos últimos três séculos, granjeou, com
toda justiça, como maior orador sacro da
língua portuguesa e uma das vozes mais contundentes, ao lado do espanhol
Bartolomeu de las Casas, a erguer-se contra a escravidão do gentio nas colônias
da América. Mas, submetido ao juízo severo da história, o “Imperador da Língua
Portuguesa” torna-se, nos tempos atuais, uma figura no mínimo contraditória,
como previu Lisboa.
Ao concentrar sua narrativa no periodo
em que Vieira viveu em São Luís, entre 1653 e 1661, Fernandes tenta recriar a
sociedade são-luisense dos seus inícios, formada por autoridades
inescrupulosas, lavradores desassistidos, mercadores, representantes de várias ordens
religiosas, índios cativos convertidos ao Cristianismo e uma multidão de pobres
faltos de qualquer assistência, acossados pela fome e pestes devastadoras.
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O escritor Ronaldo Costa Fernandes |
Ficcionista aplaudido desde sua
estreia, em 1979, com o romance picaresco João
Rama (Editora Codecri), recomendado por Antonio Houaiss como um livro “que
ninguém deve deixar de ler” por ser “grande, grande, grande!”, Fernandes conta,
com mestria, não uma, mas várias
histórias que se entrelaçam, compondo um rico e desconcertante painel dos primeiros tempos coloniais.
Antonio
Vieira desembarcou no Maranhão em janeiro de 1653, apenas nove anos após a expulsão dos holandeses do Estado, onde
se encontravam desde a invasão, saque e parcial destruição de São Luís, em 1641.
Nessa terra arrasada, o jesuíta logo se impõe pelo carisma, a oratória de fogo e a ação destemida contra as
injustiças dos poderosos e em defesa dos pobres e dos índios.
Em torno de Vieira, o romancista faz
circular uma galeria de personagens exóticos, bizarros, que remetem ao realismo
fantástico latino-americano e dão colorido e humor à narrativa. Embora seja
figura onipresente, como conselheiro, censor dos poderosos e homem de ação, o
jesuíta serve de pretexto para a reconstrução da barbárie em que
transcorria a vida nessa parte obscura
do Novo Mundo.
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